O BIFE DA TOTA
Maria
Ela era niquenta pra comer. Era cheia de
titicas, cheia de dedos, a minha cunhada.
Fora de casa, era conhecida pela distinção,
discreta, por uma grande timidez.
Inteligente e culta, tinha mil recortes, minuciosamente
catalogados e guardados a sete chaves.
O
armário da Tota era um tesouro e o dia em que ela resolvia abri-lo, era
uma festa para a sobrinhada e... para mim, a cunhada, bem mais nova que a turma
toda da casa, vista como uma mocinha curiosa...
Tudo que a gente sonhava e precisava estava
lá: poesias, biografias, letras de músicas, gravuras, receitas, moldes,
amostras de crochê e bordados - era um Bazar, o armário da Tota. Aquele BAZAR parecia
gente e tinha até apelido...”ARMAZÉM MEDEIROS” cujo nome era cochichado, em tom
de troça ... e de inveja...(A Tota fingia não ouvir, mas ficava meio
desconfiada e o silêncio voltava)
Agora, tesouro mesmo que ela possuía, era sua memória. A
gente dava um mote, puxava um pequenino
fio e ela, tímida a princípio, desfiava a História de Dores do Indaiá
com datas precisas, com detalhes interessantes, sobre parentescos, casamentos,
costumes antigos e casos engraçados. Enquanto conversava, com um pé, ligeiramente
no ar, ia ritmando a conversa com o chinelo na pontinha dos dedos, bem na
pontinha... E, quando ele ia caindo, ia ca-in..in...do...o-o-o-o, a Tota fazia
uma pirueta graciosa com o pé e o chinelo voltava ao lugar.
E a História e a música continuavam. Às
vezes, cantávamos juntas e ela disfarçava a timidez correndo a medalhinha do cordão de ouro, pra
lá, pra cá, pra lá, pra cá...
Mas, como eu dizia, a Tota era niquenta para
comer. As irmãs que, na falta da mãe, passaram a dirigir a casa, tudo faziam
para que a Tota se alimentasse bem, porque - me esqueci de contar- ela tinha a
saúde delicada e uma asma que não a deixava em paz. Daí... o momo todo...
As irmãs cochichavam - em tom de uma
zanga carinhosa:
_Ah, a Tota é assim, mas é só aqui em casa...
_Quando viaja, nas férias, oh, come de tudo
nos hotéis...
E contavam como a Tota apreciava a comida do
Hotel “São Domingos,” em Belo Horizonte, segundo as companheiras de viagem,
todas professoras, em Curso de Férias...
Mas, em casa, era desconfiada com a mesa,
com os talheres, com os cheiros, com os temperos, uma graça.
Durante as refeições, todo cuidado era
pouco: qualquer assunto meio atravessado enfastiava a Tota.
E o Tonico Caetano, tio e vizinho, já
aposentado, almoçava mais cedo e ia tumbar as prosas na casa do irmão.
Aí, a Tota chegava do Grupo, onde era
Professora de ARTES. A sessão do almoço começava com a pontualidade e um leve
ar cerimonioso, característicos da casa: as pessoas, os móveis, a fala, os
causos, tudo era tradicional e muito, muito reservado...Eram mineiros da gema,
já se vê...
Gente, até hoje, não sei porquê, naquela
casa tão tradicional, ia-se comer uma inusitada carne de búfalo – novidade surgida
há pouco e recebida com cautela pela população. Búfalo! Logo na casa da Tota!
(Eu desconfio que isso foi arrumação do Tonico, mais aberto às novidades...)
Claro, o Tonico Caetano , alegre e gozador,
participou do segredo do almoço e aguardava, curioso o desfecho ...
Tudo certo, tudo normal, mesas, rostos,
passos e tons de voz, tudo muito velado, tudo muito formal. E... foi aí que
erraram: De repente...Parece que houve algum sinal misterioso no ar e todos
quebraram o costume da casa:
Começou pela cozinheira, a Maria Loura,
que veio da cozinha com a travessa de
carne, palpitando:
_ Hoje a carne tá tão cheirosa!
Parece que foi o sinal misterioso...
Todos
se animaram e saíram do sério, cada um cuidou de elogiar a carne...
_ Que carne macia!
_ Que cheiro bom!
_Hoje a Maria acertou no tempero!
Até o Sô Joãozinho, o chefe da casa,
resolveu dar o seu parecer:
_ É... Carne tem de ser lá do Zé Ingué! É
por isso que faço questão de ir lá, todo dia – trago a carne fresquinha....
A Tota, muito viva e observadora, examina o
bife: antes de servir-se, vira a carne pra pra lá, vira a carne prá cá e decide:
_ É... tem dúvida aqui.... Vocês estão
elogiando demais essa carne! Tem uma dúvida qualquer...
_ Desconfiada, niquenta, ressabiada, desculpou-se e saiu
da mesa...
Nesse dia, passou a mingau, para aflição das
irmãs...
As gargalhadas do Tonico e do meu sogro, Sô
Joãozinho, retumbavam lá na Praça antiga, longe da Tota, emburrada no quarto...
Aprendi. Aprendemos todos aqui em casa.
Quando uma coisa é muito elogiada, muito explicada, calma lá! Tem coelho nesse mato...
E a gente sempre avisa pro outro:
_Olha o bife da Tota.
E temos nos safado de poucas e boas!
_Mineiro é bicho desconfiado, dizem todos.
_Será?
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Dores do Indaiá, 22
de março de 1974.
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