segunda-feira, 16 de junho de 2014


LAVADEIRAS ESTRELADAS

Maria.

 

         Morro de saudades das lavadeiras de roupa lá de Estrela do Indaiá..

         Era um dia diferente, alegre, cheio de novidades...

 

         Elas chegavam carregando capangas cheias de ramos, colhidos aqui e ali e sempre traziam um raminho de arruda atrás da orelha – junto com o pito de palha...

         Sabiam benzer de quebranto, mau- olhado, espinhela caída, pés- rachados, vento virado, piolhos e, acima de tudo, sabiam mil mandingas para as moças arranjarem namorados...

          Seus nomes tinham outra música, tinham um quê de magia, como aqueles ramos, aquelas rezas e as querelas que traziam... SALVINA, MERENCIANA, BASTIANA, BÁ, DONETA ,SAZIRA, LETA DO TONHO, SACEZÁRIA, NHANA, CHICA, CORINA, BECHOLA, MERENDOLINA...pareciam nomes de borboletas, de siriricas, se elas tivessem nomes...

         Algumas doenças eram cochichadas,” menina atrevida, isso não é assunto procê” escutá...

         Mesmo assim, eu descobria os assuntos impróprios : doenças de resguardo de parto,males de mulher de moda, (tradução: grávidas, palavra nunca sabida naqueles tempos) falta de apetite de moças solteiras e que estavam ficando pra titia...”Repara nos suspiros dela – é falta de marido...”

         Traziam novidades fresquinhas de namoros proibidos: “Eles fugiram de madrugada, ela deixou a janela do quarto aberta, ele foi de jipe e roubou ela, lá da fazenda...

         A lorota continuava:

         “Bem que a comadre Sinésia estranhou o tanto de anágua, de combinação e corpinho que a moça pôs pra lavar... E teve inté de engomar tudo...(Um suspiro fundo e cansado marcava uma pausa)

         Aí, arranjaram testemunhas, foram pra Luz, o Bispo casou os dois e pronto...

         O pai dela teve que engulir...A coitada da mãe  ficou de cama três dias – até fui lá benzê ela de espinhela caída...

         E hoje eles vivem a pão-de-ló, numa casa boa e ela já tá de moda...

         E a lavadeira desenhava  UM NOME DO PADRE  no  peito magro, esconjurando tanta falta de juízo...

         O cochicho continuava dia afora, e a Madrinha Maria trançava da cozinha para a casinha de lavar roupa. O tacho grande soltava uma fumaça cheirando a sabão de pelota, patchuli e folha de mamão pra clarear a roupa que fervia...A meninada trançava também e bispava tudo.

         Eu, aproveitava –zanzava o dia todo, de casa em casa, ia de vizinha em vizinha: gostava de ver as roupas dos vizinhos corando na grama, em matinhos da beira da casa. Gostava de imaginar as anáguas das moças da casa dançando... Gostava de imaginar os vestidinhos das meninas da casa brincando de roda...Gostava de ouvir os casos de amores proibidos, de doenças e benzeduras...

         A hora do almoço era outra festa: sempre havia a companhia de pessoas que trabalhavam na casa e, não raro, da própria patroa, geralmente, comadre da lavadeira...

         Servir o prato, lá no fogão a lenha, era um ritual respeitoso e tradicional:  hora de comida era um hora sagrada!

         Primeiro, o feijão bebido, coberto de farinha... A um canto, um montão de arroz, no outro, macarrão de buraquinho, com molho de tomatinhos e belos pedaços de carne de porco, torresmo, mandioca... O cheiro era tão gostoso, elas comiam com uma boca tão boa!... Depois, limpavam as mãos na barra do vestido, no pano da cabeça e... cantavam o ofício de Nossa Senhora, enquanto faziam o quilo... Outra hora benta, da qual nunca vou-me esquecer

         Cresci neste meio simples e poético: cresci ouvindo histórias que eu só via  nos livros de fábulas, de príncipes e princesas. De verdade, eu vivia em um reino de fantasia...

         O cochicho continuava dia afora, e a Madrinha Maria trançava da cozinha para a casinha- de- lavar- roupa. O tacho grande soltava uma fumaça cheirando a sabão-preto,  de pelota, patchuli e folha de mamão pra clarear a roupa que fervia...A meninada trançava também e bispava tudo.

         Cresci, com cara-de-fada, com cabecinha no ar e coração doidinho...

         Hoje sou uma vovó-menina, uma velha-mocinha-velha: tudo por culpa de uma certa Estrela...

         Se não morei numa estrela de verdade, daquelas lá do céu, juro que vivi num Reino Encantado....

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Dores do Indaiá, 23 de maio de 2014.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

             

               

 

terça-feira, 10 de junho de 2014


QUARTO DE COSTURA

Maria
Para o Dia dos Namorados,
(Lembrando o começo de namoro com o BEM, no ano de 1953)

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                Eu tive e perdi um certo quarto de costura.

        Eu tive e perdi uma janela, um alpendre, um calçadão na Avenida.

        Ele era o ponto de encontro das damas chiques da cidade. Minha tia Helena costurava em meio a conversas sobre cinema, sobre livros e, sobretudo, falava-se de moda.

        Considero puro milagre minha tia não errar as costuras misturadas a conversas tão animadas...

        Quando vim estudar aqui, menina ainda, não era admitida nas rodas de gente grande. Ficava estudando na sala ao lado, escutando as conversas, descobrindo as coisas.

        Bendita mesa de jantar, onde eu estudava, bem em frente à porta da rua!

        Ouvi palmas. (Não existia campainha nas portas...)

         Fui descalça mesmo atender.

        _ Diga pra sua tia que a Laura não pode provar o vestido , na hora marcada – vem às quatro horas.

        Nunca mais perdi o moço de vista. Achei-o lindo, de covinhas no rosto, uma barba azulada na pele clara... Só pensei que “era uma pena lhe faltar um dente, mesmo na frente!”

        Guardei o segredo do moço e, da janela do quarto de costura, enquanto as visitas não chegavam, eu o seguia , com os olhos, na ida e vinda do Banco... Limpava a poeira da janela pra minha tia não desconfiar...

        Ficava olhando o seu sorriso, o seu olhar comprido lá da porta do Banco e ele era o último a entrar, depois de me fazer um leve cumprimento de cabeça...

        Nunca um quarto de costura foi tão varrido, tão limpo, tão esfregado! Com a (im)paciência de quem espera um grande momento, eu espetava, na mesa macia, cada um dos mil alfinetinhos que achava espalhados pelo chão, com um cuidado especial, fazendo o tempo coincidir com a passagem do moço bonito: quando ele sumia na rua, eu espetava o último alfinete. Toda a tarde era a mesma coisa...

        Quantas vezes escondi meu prato dentro do forno só para ver o moço “sem dente na frente” passa... Quantos tropeções, quanto papel jogado no passeio, só para ter a desculpa de ganhar seu sorriso...

        Minha tia Helena fazia maravilhas de roupas para as noivas. Eu sonhava, sonhava, olhando a prova dos vestidos longos, das camisolas compridas abertas em rendas... Eu sonhava com o moço do Banco e, no lugar das noivas, eu me enxergava dentro de mil véus,

De mil laços, com mil saias...

        Aos poucos, fui sendo admitida nas rodas das damas e já aprendia a fazer os arremates nas costuras..... A máquina rodava e eu sonhava, em meio às rendas, bordados e fiapos de conversas... Enquanto isso, o moço passava e continuava a me dar um sorriso...

        ‘Cada freguesa, cada amiga ensinava uma coisa, emprestava um livro, ensinava uma receita para resfriados, receitas de bolos... E eu ia crescendo... E o namoro-de-longe também crescia...

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        Hoje passei lá na Avenida.

        O quarto de costura está lá. Falta uma máquina, uma tia.

        O moço do Banco? Lacei-o para mim...

                 A falha de dentes? Não era uma falha, eram os dentes separados, uma característica que me encantava sempre...

        Em nossas conversas, rimos muito... Eu falo:

_      Não fosse a falha de seu dente... sei não...

        E ele confessa rindo que, ao ver meus pés tão branquinhos, ficou preso para sempre....

        Pois é.

Eu tive uma rua, um quarto de costura, uma jnela que perdi...

        Mas lacei um BEM. Pelos pés...

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Dores do Indaiá, 18 de abril de 1999.

         

terça-feira, 3 de junho de 2014


LOÇÃO / NOÇÃO

 

A moça chegou.

Sua beleza – quase primitiva – inundou a sala quente e barulhenta.

Por aqui – meio rural – ainda podemos encontrar aquela beleza que não conhece shoppings, salão de beleza, dietas e maquiagens sofisticadas. A linguagem seguia o mesmo modelo. Mas tudo tinha uma graça singela, uma presença pura, uma brejeirice do sertão.

Quando ela entrou, a roça entrou junto. Cantos de pássaros, pastos verdes, flores do campo, cheiro de terra, frescor de água.

Meu coração tem um pé na roça. Ele se enternece com a visita da poesia das fazendas de minha terra.

A moça falou de chuvas e sóis, de poeira e secas, de flores e fontes, de olhos d’água e teares.

Tinha aquela despreocupação própria dos simples: a vida lhe era infinitamente generosa – tinha tudo para ser feliz!

Um retiro, umas vaquinhas, galinhas, ovos, um chiqueiro “limpinho, dona”, uma hortinha e canteiros de flores na porta da casa.

- Que cabelo mais bonito!

- Ah! Eu lavo ele é com babosa...

-Que perfume mais suave de sua roupa!   

- É qui eu põe patchuli dentro da caixa...

A “sala de serviços burocráticos” deu uma parada e a moça encheu os arquivos e gavetas e mesas e livros e computadores e impressoras de uma fala mansa e antiga. Sem pressa, sem correria, com todo o tempo dentro de suas mãos...

Então, chega o filho da moça, candidato a um lugar na Kômbida, para estudar em outra escola rural. Outro pedaço das Gerais, outro pedaço do Brasil de pés no chão, aquele Brasil que insiste em suas origens. O Brasil bravio, sertanejo, roceiro, que pisa na terra vermelha, abrindo trilhas em meio ao cerrado-de-pernas-tortas.

O menino achegou-se ao colo farto da mãe, ao colo mineiro, ao colo do sertão do Brasil.

- Mãe, eu quero vim é na Kômbida do homi de boné verde...

- Ah! Mas ele invém é cedim... E sua iscola é di tardi...

- Ah! Mais eu quiria era o Kombideiro de boné verde...

E a moça, iluminando a sala com seu jeito singelo, explicou:

- Tadim... Ele não tem LOÇÃO de nada...

Do alpendre – trabalho em um prédio antigo, com alpendre, uma joia antiga – segui os dois com o olhar...

O marido esperava a mulher e o filho numa charrete romântica e poética. Empoeirada e rústica como nossas roças antigas.

Lá se foram eles!

- Ah! vontade de não ter LOÇÃO de nada...

- Ah! vontade de ter uma roça perfumada, uma escolinha na curva da trilha, uma touceira de babosa para lavar meus cabelos...

Ah! vontade de não ter LOÇÃO deste mundo moderno e doido, onde o tempo leva tudo para lugar nenhum.

- Ah! vontade de não ter LOÇÃO de nada e carregar o tempo dentro de uma charrete cheirando a patchuli...
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Dores do Indaiá, 14 de janeiro de 2005

LEITE DA ROÇA

 

Leite em caixinha, leite ensacado nunca me pegou! Gosto de leite da roça, gosto do barulhinho da charrete, gosto do cheiro de roça, do cavalo. Gosto de ver a latona antiga, o litro de alça em que o leiteiro mede o leite e põe mais um pouquinho “pra descontar a espuma”...

Às vezes, os netos sobem na charrete e dão uma volta grande com o leiteiro, numa alegria abençoada. E voltam contando o nome das vacas:

Mimosa, Fumaça, Sombrinha...

Fico terna, fico fada, lembrando-me das fazendas de minha infância... Com o nome delas, eu faria um poema.

“Melindro, Boqueirão, Vitória, Porteira Pesada, Campo Alegre, Barras, Olaria, Mata de Eufrásia, Monjolo, Pé da Serra, Jabuticabas, Marmeleiro, Prendas, Rio Manso, Cor’go das Almas, Cor’go de Nossa Senhora, Tapuias, Pasto Verde... Estrela. Paracambi..”

O gosto de leite do curral curou meu coração, fincou raízes e nele fez morada.

*                  *                   *

Com o tempo, “aprimorei” a entrega do leite: deixo uma vasilha na mesinha do alpendre. O leiteiro – um amigo antigo – deixa o leite e, depois, a gente pega lá.

Ali mesmo, através de bilhetes, fazemos o acerto: ele deixa a conta, num papelzinho, debaixo da vasilha. No outro dia, deixo o dinheiro. Se há troco, ele deixa lá e nunca deu errado... É a vidinha boa do interior.

- Nunca deu errado?

- Ah! Outro dia, a Vani chegou afobada e, sem notar, trocou a vasilha. Em vez da leiteira, colocou uma vasilha mais rasa, de boca larga e... sem tampa...

Daí a pouco, toca a campainha.

- D. Branca, olha aqui!

- Jesus! Santo Deus!

O gatinho da casa, que o Artur, meu netinho, batizou de Lucas (será por quê?), estava no bem-bom, tomando o leite da casa...

Nesse dia, tive que comprar leite de caixinha...

A Vani se desculpou:

- Era muito mais mió frevê o leite assim memo, pruquê, agora, com soda e água oxigenada que êzi põe, é muito mais pió...

 

 

 Em maio de 2002