terça-feira, 2 de junho de 2015


                                                     
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 RELENDO PAPÉIS ANTIGOS.

 

(Para o meu Pai – que deixou uma luz em seu lugar e em meu coração.)

 

         No dia 13 de setembro de 1957, eu era o nº 18 da Turma C do Instituto de Educação de  Minas Gerais,  Escola/sonho de toda moça se formar Professora...

         O Professor de Português, Wilson Chaves, fora substituído por uma moça linda – Ivana – filha de D. Maria Emília Goulart, Professora de Desenho.

         Desenhar, nunca soube! Nunca sei fazer um simples patinho que não tenha que explicar: isto é um pato...

         Mas, já naquele tempo, gostava de escrever diferente...

         Ivana chegou e pediu que fizéssemos uma redação com o título RELENDO PAPÉIS ANTIGOS.

         Eu sempre relia a carta de papai e...Bem eu a sabia de cor...

         Então eu escrevi assim:

 

         Há certas coisas que, apesar da existência visível, nos levam sempre a crer que estamos diante de um mistério, de um sonho que nunca houve.

         É o que acontece com as cartas de pessoas que já morreram. O papel, as dobras da carta, a letra, tudo nos parece absurdamente irreal. E, no entanto, aqui está a carta de papai.

         Como é estranho pensar que este mesmo  bloco passou por suas mãos. Suas mãos? Como eram elas? Já nem me recordo delas com vida, com movimentos. Só as vejo pálidas, tristes, duramente cerradas sobre seu peito bondoso.

         E esta carta foi escrita por elas.

         ‘                     "Idolatrada filhinha’.              
 
 Será que já ouvi mesmo essas palavras de meu papai? Como elas soam friamente, depois de tantos anos!

         ‘Boa filha, seu pai está, hoje, longe daqui, por isso, não passará com você o dia de seu aniversário...’

         E, por entre as lágrimas, já consciente da realidade, leio ainda:  

"o presente material torna-se nulo diante do espiritual. Assim, peço a Deus que que a faça sempre boa e obediente, como até hoje o foi. Em nome de Deus, abençoo-a, querida filhinha.

         Papai’"
 

         Como esse papel me faz bem; guardo-o comigo, atado na fitinha cor-de-rosa do presente,que, apesar das admoestações, papai me enviou     Com gesto lento reponho a carta no lugar.

         Meus olhos já  não distinguem uma só das queridas letras.

                                  ‘Seu pai está, hoje, longe daqui...’

 

         Tenho vontade de gritar que já sei disso, que não me interessa acreditar nisso...

                                                     ‘Longe daqui’...
 
                                                E... alto, começo a soluçar.
                          ..........................................................................
         Guardo a redação até hoje, com a aprovação da Professora.

         Com ela, ganhei um prêmio muito importante: uma linda caneta!

         Melhor, essa redação foi um passo a mais para que eu continuasse a escrever sobre tudo o quê sentia, sobre tudo o quê via...

         Melhor que o prêmio foi a confiança que essa redação me trouxe para, daí a alguns anos, eu me transformar na MARIA....



Dores do Indaiá, 6 de junho (aniversário de meu pai, Osório Caetano da Cruz) - 1988

 

 

 

 

 

 

 

 
 

 

           

 

 


ANIVERSÁRIO DE VÓ.

         Maria

 

         Nunca fui muito de comemorar aniversários.Ainda mais  na idade de vó, sem o abraço do BEM... Acho forçado, acho  desnecessário, acho tudo   muito costa-acima - na gramática estrelada.

         Gosto do meu jeito de ser feliz  todos os dias, com aquela felicidade miúda, com as  lembranças de todos os dias, com as saudades de todos os dias, com as alegrias de todos os dias... Sem elas, eu não seria feliz: tudo tem seu lugar em meu coração: bulir naquele baú antigo, desencaixaria   as emoções e  a Maria sentiria falta de algum retalho de saudades, de um     remendo de alegria, de um bordado de lembranças, de um tiquinho de tristeza...

         Meu coração é rotineiro – não se dá ao luxo de novidades: elas  mudam seu rumo, mudam sua dança: ele até perde o jeito de ver as nuances  das cores do céu, mistura aurora com entardecer, mistura vozes, mistura  sons, fico fada, fico velha, fico menina, fico doida. Prefiro a mesmice: acho  meus azuis, meus sóis, meus afetos, minhas pequenas tristezas,  minhas rezas antigas –      Meu Deus, eu creio em Vós, espero em Vós e Vos amo de todo o meu coração. Eu Vos agradeço por me terdes criado, me feito cristão e me conservado nesta noite. Para Vossa glória eu Vos ofereço todos  os meus pensamentos, palavras e obras desse dia. Conservai-me em estado de graça, livrai-me de todo o pecado e de todo o  mal. Mãe Santíssima, anjo da minha  guarda, todos os anjos e santos do céu, rogai a Jesus por  mim, amém.”

          É assim que começo o meu dia, desde sempre – não sei onde aprendi a rezar assim; na igreja? com minha mãe? Tanto faz com tanto fez – nunca pensei em corrigir  nada, masculino, feminino,  imperativo...   fui descobrindo  o significado das palavras ao longo da vida. Pra que  mudar? Sempre deu certo, sempre rompi o dia - hoje mais longo , amanhã mais alegre - com essa reza rompi   adiante, não mudei nada. Muito menos no dia de meu aniversário...

         Então, todos os aniversários são  dias  iguais aos outros aqui  em casa: sem bolo, sem salgadinhos, sem brigadeirinhos,  sem palmas e sem grandes arroubos...

         Mas, a Luíza, minha  neta linda, pensa diferente,  sente falta da festinha, eu vejo que sente. Sempre passa aqui, fora de hora, quebrando a monotonia, sempre querendo enfeitar meu dia. Chega, dengosa, com estrelas nos olhos...Sempre  me pega em horas normais de trabalho – quer dizer, aulas...  Eu faço sinal de silêncio pra ela, ela entende, ri com os olhos apertadinhos, dá uma voltinha na casa e ...

 

         Nos dois   últimos anos, coincidentemente, eu estava dando aulas: ela chegou, ficamos em atitude de companheiras do grande segredo: pra não dizer que não falei de flores, fui lá dentro, trocamos  abraços e beijinhos, rimos, compactuadas com a magia do silêncio. Então, falei alto, para as  alunas ouvirem, só para ter o que falar:

         _Luísa, trata das galinhas pra vovó, trata?

         Tadinha, ela tem horror a galinhas, a bicos e cristas e cocoricós. Mas levou o pedido ao pé da letra!

         Daí um tempinho, ela volta, dá um tiauzinho, deixa mil beijos no ar da tarde azul e se vai...

         Final da aula...       

         Em cima de minha cama, uma cartinha da Luísa:

 

        “Vó, parabéns! Beijos, Luísa.      

         *Vó, você vai rir disso, mas fiquei com vergonha de falar   perto das mulheres (alunas)...Fiquei com medo de jogar milho para as galinhas. Elas estavam gritando demais  e tinha uma  solta... Sorry.

          Luísa.

 

          Em outro aniversário, lá vem a  minha  linda.

         Mesmo ritual,  mesmo pacto de silêncio.

         Deixei-a na cozinha, onde recebi seu carinho. Minha filha  também estava   em casa. Voltei às aulas e... o telefone tocou: era a Maria Inês (Miranda de Carvalho) de Belo Horizonte... Luísa   passou perto de  mim, apontou para um papel  que trazia nas mãos    lá se foi: tchau, tchau!!!

        

         “Vó. Vou embora. A geladeira caiu comigo. A  parte onde ficava a água (uma  parte de lado).

         A Tia Ana Rita já arrumou tudo.

         Tenho que ir. Acabar   de fazer reportagens.

         Amanhã, depois da aula, passo aqui. Beijos.

          Luísa.”

 

         Por essas e  outras, não preciso fazer empada e nem brigadeiro pra comemorar  meu aniversário de vó...

         _ Há presente  mais bonito que as cartinhas de minha neta de olhinhos puxados, há?

         Meu coração está falando que não há  nada  mais lindo...

          E ele sabe das coisas!

 

         Dores do Indaiá, 2 de junho de 2012.

UMA CASA MINEIRA

Maria

        Com certeza!

        Mamãe controlava nossa casa com pulso mineiro. Isso quer dizer, com mil manias, mil crendices populares, mil superstições.

        Nós, a meninada, passávamos  rabiados, como dizia a madrinha Maria.

        Comida nenhuma dava certo com outra. Manga com leite, carne de porco com manga... pepino era um  veneno e só papai , muito topetudo, se atrevia comer do tal veneno! Eu ficava impressionada de ver como o meu pai era um herói: comia pepino e não morria.       Ovo era outro tendepá na casa da D. Fia. Nada dava certo com ele! E, se alguém não resistia à tentação, lá vinha a cantilena:

        _Depois de comer ovo, tem de ficar duas horas sem tomar água!

        _ Por quê?

        _Ah, porque fazia arrotar choco...

        Nossa! Jabuticaba era outro grande perigo! Dava tonteira, explicava mamãe.

        E goiaba? Jesus, quantas vezes passei vontade de comer goiaba vermelha... Porque, segundo os entendidos, era mais remosa...

        Cana, só lá pelas oito  horas da manhã, uns dois gominhos que papai colocava nas canecas esmaltadas de cada um.

        “Banana”  suspirava mamãe, de  manhã é ouro, de tarde é prata, de noite...- mamãe fazia um ar trágico e completava: de noite, MATA!

        Verdade, até hoje não sou capaz de comer uma bananinha, por mísera que seja, depois das seis horas da tarde  – hora misteriosa, boquinha da noite.... Ah, couve e repolho na janta, jamais! Isto é comida pesada, sentenciava D. Fia.

        Garapa? Nunca tomei! E o pavor de dar ataque, de sofrer sucesso, com profetizava minha santa madrinha...

        Pipoca, a gente precisava moer nos dentes, pra não ter de alperar do alpendre...Tradução da fala da madrinha: operar do apêndice...

        _A gente não é galinha... Galinha não tem dentes, mas tem pedrinha na moela... Mamãe era entendida em apêndice, pelo que ouvia...(Ah, que vontade ser galinha e ter pedrinhas na moela, pra não ter que moer as pipocas nos dentes...)

        Falando em milho... e a bendita canjica? Dia de tormento. Bem longe da janta, mais longe ainda do banho. À noite, de jeito nenhum!

        _Tomar banho de assento depois de canjica, pode dá até congestã...

        _Ou ursa, arrematava madrinha. Ah!, gente! Até que ursa é mais fácil de falar do que úlcera, convenhamos. Só que a avoadinha aqui, pensava que comer canjica fazia nascer uma ursa de verdade lá dentro da minha barriga, com olhos, dentes, unhas, ah, que horror – nunca comi canjica naqueles anos dourados! Só mais tarde, muito mais tarde!

        Os remédios pra dor na boca do estambo (estômago) eram os piores que já vi: chá de amor-deixado, chá de folha-de-mamão, chá de boldo, marcela e até chá de cinza de fogão. Era só esperar a cinza assentar no fundo da xicra...

        Ah, havia uma xícara famosa, - a CHAVA – (chávena) que só faltava  matar a gente, pelo tamanho, pelo conteúdo, quase sempre amargo, com gosto de remédio para bicho (se bem, que, naquele tempo, bicho nenhum  tomava remédio...)

        _ Toma a CHAVA toda, minina. Se não arresorvê, tem de tomá o BUSCAPÃO (Buscopan)...

        Mas, o melhor de todos os remédios –o  abençoado- era o tal de purgante de cramelano (graças a Deus, nem sei como se escreve o bendito purgante...)

        Banho, outro tutu lá de casa... Só depois de três horas do cumê, dizia toda a Estrela.  E, no quarto fechado, pra evitar as correntezas, pra não istuporá.

        _ Já vi um home que virou a cara pra trás, porque istuporô....

        _É... ele tomou banho de assento e saiu              no sereno da boca da noite...

        Outras pérolas da CASA MINEIRA, onde vivi, entre mil cuidados e carinhos. E da qual, milagrosamente, escapei de tanto perigo.

        _ Olhar no espelho depois da comida, de jeito nenhum!

        _Tirar bicho-do-pé, também na hora fatídica, era um perigo : dá teto! (tétano)

        _ Cortar unhas, credo em cruz (Claro, depois da comida...)

        Correr, sair no sol, deitar de bruço, lavar roupa, molhar os pés, nada, nadinha disso, a gente podia fazer depois do cumê, dizia a Estrela toda!

        Ler, depois da comida, também era um Deusoliveguarde!...

        E a madrinha Maria contava um causo que arrancava admiração da plateia: nós, a meninada... “Um cumpade da mãe comeu, garrolê e...oh, ( madrinha fazia o sinal da cruz, tadinha!) foi pro bico do urubu!

E eu, sonsinha, pensava que garrolê era uma comida chique, de outro lugar, quem sabe de outro mundo, japonesa, sei lá...

        Graças a Deus, lá em casa, nos salvamos de um remédio pra defruxo (defluxo, resfriado...) receitado pelos mais velhos para curar todos os males do peito, chiados, asma....Grande parte dos meninos estrelenses se lambuzava o dia todo, com um pedaço de toucinho cru, passado no sal grosso......

        _É bom pra untá os peito, falava a sabedoria da madrinha Maria...

        Ah, meu Deus! Escapei! Estou viva!

        Só não escapei da saudade...

        Vivo com o coração carregadinho de lembranças, daquela casa mineira.

         Com certeza!

 

        ************************************************************

        Dores do Indaiá, 7 de maio de 1997.

ESTRELA NO CHÃO

 

Maria

(Esta crônica é para Morais e Hilda, um casal que ainda vou conhecer pessoalmente, que são amigos sem rosto, mas com um coração de verdade)

 

        Que as belezas do céu sempre me encantam, não há dúvida: a menor brisa que passe por mim, tem o sortilégio de me levar junto, para outras paragens …O menor raio de sol que nasce mais cedo em minha  janela, é motivo para  que meu dia seja enfeitadinho de alegrias.  Se uma estrela diferente aparece em meu   céu,  é  promessa de uma noite de belezas. Ah, a lua, Deus meu! Não precisava ser tão bonita, tão feiticeira para  me encantar!

        Desde menina, gosto de vigiar o céu, descobrir-lhe segredos, descobrir-lhe nuvens diferentes...

        Por isso, quando visitei  Acesita pela primeira vez,      fiquei fascinada    com um  céu que eu nunca havia visto igual.

        Da Pracinha,   bem perto ao hotel da D. Iracema, eu namorava o BEM  e o Céu...Para mim, ambos tinham o  mesmo encanto.

        Tudo novo para a noivinha feliz que eu era: cinema novo, ruas calçadas, cidade limpa,  pratos com  que  que eu nunca  sonhara: carne de capivara, brotos de samambaia, peixes e até - me diziam rindo – um prato de caranguejos. Do mar, sem dúvida, mas o   nome espantava  a mineira de terras  bem diferentes, cá no sertão , cá no Cerrado. Acesita, Usiminas eram um   mundo novo, colorido com outras cores, além das que faziam parte do meu pequeno mundo.   Gente apressada, dinâmica, roupas      de couro,  ninguém era conhecido.    A  começar pelo céu que a cidade me apresentou ali na Pracinha...

        Uma estrela  insistente, muito baixa, de  luz avermelhada me fascinava, me chamava      com seu brilho      de fogo...

        Parecia que eu poderia pegá -la    e levá-la para enfeitar meu quarto    e meu coração.

        Eu espreitei aquela estrela desde à tardinha e ela continuava lá: imutável, serena, quase ao alcance de  minhas mãos.

        Cinema, voltinhas na Praça, pipocas, porta do Hotel e a estrela  ali,  parece que querendo falar algum segredo para   a mocinha que eu era.

        Eu também não falava  nada, com medo de espantar a minha estrela particular. Ficávamos nos vigiando,   ela num céu muito baixo, eu na Pracinha  namorando o meu BEM.

        Eu a vigiei todas as noites, de muitos lugares, com muitos olhares.

        Na noite de despedida de Acesita, ela se mantinha lá.

        Olhei-a muitas vezes. Ela silente, como tudo no céu. (Ah, que palavra mais linda e que há muitos anos eu não escrevia – SILENTE …) Mas, a minha estrela não era silenciosa, ela era silente – um silêncio com  gosto de abraço, com  gosto de namorados no portão da casa antiga...

        Olhei de novo, talvez eu descobrisse, no último instante, a fala de minha estrela.   Mas ela continuou calada, olhando-me com seus olhos de fogo.

        _    Por que você  olha  tanto para o céu?

        E o noivo apontava a direção de minha estrela.

        _ É...é...é uma estrela diferente que eu nunca vi …

        Juntos, voltamos à Pracinha  - desculpa para ficarmos  juntos mais um pouquinho...

        _ Aquela vermelha?

        _ É, é aquela ali, bem baixinha, quase no chão...

        O BEM riu.

        _ Ah, vou buscá-la pra você, quer?

        Rimos de pura felicidade:  eu com uma estrela nas mãos, presente de meu BEM – seria  uma bela  lembrança do céu escuro de Acesita!

        _ Que estrela é aquela?

        _ Não é estrela... É uma luz vermelha na torre de televisão, lá no alto da montanha,  que fica aqui pertinho...

         O céu que eu via não era céu – era uma   montanha muito alta. E que a minha estrela não era estrela, era uma luz vermelha, sinalizando um caminho estranho para mim.

        Hoje, passados tantos anos, contei isso para um amigo de Brasília que, em outros tempos, morou em Acesita, Fabriciano, Ipatinga...

        No livro que me enviou, VIVANDÂNCIAS, ele  fala desses lugares queridos, com outro olhar, com outro jeito de escrever.

        Ao lado de  Hilda, sua esposa, ele pôde ver como foi meu primeiro encontro com a região que acolheu um jovem casal, ela, tão sonhadora, que via estrelas no chão... pertinho  de suas mãos enamoradas.

        É que, por aqui, estrelas brilham alto, com luz amarela, piscam pra gente   e até rodopiam no céu.

        É que, por aqui, montanhas estão longe, pincelando o horizonte de azul.

Por aqui, o horizonte é longe, longe e azul...

        Muito mais longe, muito mais azul, quando a noivinha está silente, enquanto  o seu noivo foi colher uma certa estrela vermelha  para ela enfeitar seu quarto e seu coração.

 

 

        Dores do Indaiá, 20 de maio de 20011.

CORRIDA DE TÁXI

Maria.

(Para os filhos do Sô Alcides Oliveira Sobrinho e D. Maria Dalva Soares de Oliveira, nossa querida DALVA MACHADO.

        Eu passava pra lá e pra  cá pela frente da rodoviária velha. Ali era o meu caminho para a Escola Normal, onde trabalhava de manhã à noite. De tanto passar, acabei ficando conhecendo todos os taxistas. No interior é assim – só de passar perto, fica sendo conhecido, fica sendo amigo. “Amigo de }Bom-dia”...

        Era assim que eu conhecia um chofer de praça: bom-dia, um sorriso, como vai, oi, boa-tarde, tudo bem? Isso, por aqui, significa ser conhecido, significa “poder confiar”...

        Era um moço alto, forte, com jeito de comerciante, de dono de cartório, de bancário. Tudo nele era limpo, o carro brilhava, o cabelo preto, sem um fio fora do lugar. Roupas sempre muito limpas, sapatos tão engraxados quanto os pneus de seu táxi.. Era ver o dono, era ver o carro. Por isso, quando voltei de Belo Horizonte, naquele dia, estava tranquila. Gastara os últimos trocados na compra de um livro – Olga Benário que eu andava louca pra ler.

        Quando entrei no ônibus, vi a cara do motorista, do trocador, a cara do povo... Graças a Deus, estou em casa!

        _ Pra que dinheiro? Chego lá em Dores, pego um táxi e pago lá em casa!

        Olhei, olhei, procurando o Sô Alcides, nosso velho amigo, nomeado CHOFER DA CASA pelo  BEM. Com ele, a turma toda rodava tranquila. Aí avistei o chofer do bom-dia, como vai. Falei com um menino: _ Qual é o nome daquele chofer lá?

        _Ah, é o Zé Arve...

        Eu já esperava a gentileza e a timidez.

        _O senhor pode me levar em casa?

        _Hã..hã...hã...

        _O senhor sabe onde eu moro?

        _Hã.. hã..há...

        _Eu posso pagar lá em casa? Estou sem dinheiro...

        Quis espichar a prosa, explicar mais. O Zé Arve não rompia com o papo.

        _ Posso pagar lá em casa?

        _Hã, hã!

        Tudo certo, descemos a Avenida Francisco Campos. Pela primeira vez o Zé Arve falou uma frase:

        _A senhora ainda mora no mesmo lugar?

        -Hã, hã! Imitei o Zé Arve, já que ele era caladão e tímido. Daqueles que  envermelham só de falar hã, hã.. Aí, em vez de ele virar na São Paulo, que seria o normal, ele seguiu reto. Pensei:

        _Ele vai descer na Rio de Janeiro, já  fica com o carro virado para a rodoviária...

        Qual nada! O Zé Arve subiu pela Zacarias e continuou em frente. Gungunei qualquer coisa e ele, firme, caladíssimo, limpíssimo, eficientíssimo, seguindo em frente. Aí, foi parando, parando, parando... até parar. Eu tentava entender, tentava perguntar:

        _Uai, por que paramos aqui?

        O Zé Arve, vermelhinho, abriu a porta para mim, foi descendo as mil malas e sacolas.

        _Pode descer...

         _Uai, mas eu não moro aqui!...

        _Uai, a senhora falou que morava no mesmo lugar...

        _ Moro mesmo, só que é no outro quarteirão, ali atrás...

        Pensei que o Zé Arve ia estourar de vermelhão. Tentei explicar      _ A minha casa é aquela lá, Sô Zé... Não faz mal, está pertinho...

        Ele, encabuladíssimo, voltou as malas pro carro.. Olhou mil vezes para o meu rosto, conferia no espelhinho. Eu sem entender nada.

        Só quando chegamos à minha casa de verdade, ele falou:

        _ Uai... eu pensei que a senhora era das “ALEMOAS’...

        Não ouvi mais nada. Estourei de rir, e ria, e ria, e ria...

        Tapava o rosto com as mãos, via a cara espantada do Zé Arve, como disse o menino, e recomeçava a risada.  Ele foi embora, vermelhinho, no carro limpíssimo, com certeza, pensando que eu não batia bem...

        Na hora, não dei conta de explicar nada ao tímido motorista, porque muita gente pensa que eu sou parente do Walter Alemão,  pensa que a D’Arc Ude é minha mãe, ou  minha tia... Só no outro dia, quando fui acertar com ele, pudemos conversar.

        Me  desculpe, Sô Zé.  Tenho essa mania de rir à toa, nem te paguei ontem...

        _Me desculpe a senhora. Mas... eu jurava que a senhora era das alemoas...

        Tantos anos isso! Depois do caso, ficamos fregueses. E amigos!

        Agora, a morte do Zé Arve. Rezei pra ele não morrer, não era hora. Tão novo, tão cheio de vida! Tão educado, tão eficiente, tão discreto!

        _Meu Deus, devagar a maldade vai chegando cá no interior, cá no sertão. Um lugar  onde a gente conhece todo mundo, só de falar bom-dia, boa-tarde. Um lugar onde a gente entra no táxi, sem falar nome de rua, número de casa, sem dinheiro e sem documento.

        De verdade, Dores está arrasada como a fúria dos assaltantes. Somos um povo simples, amigo. Só queremos trabalhar, cuidar de nossa vidinha, ler o nosso livro, entrar num táxi brilhante  e deixar o motorista rodar. Pelas ruas que nós amamos.

        _Ah, Zé Arve, me desculpe tanto riso e, agora, me desculpe tanta tristeza. (Penso que ele está falando:)

     _ Não é nada... me desculpa a senhora... Mas que a senhora tem a cara das alemoas, ah, isso tem!

        E agora, em que táxi vou andar, sem dinheiro e sem endereço?  Sem o Sô Alcides, que já se foi e deve estar  carregando anjos nas nuvens, sem o Zé Arve... E agora, em que táxi vou andar?

        _ Vocês sabem me contar...

               

               

                 Dores do Indaiá, 4 de  janeiro de 2003.

Bagageira

 

 

“Vivi junto com você e não vi nada de diferente! Que cabeça boa!”

(Amiga de infância)

 

            Eu também não sabia que meu coração ia carregar a beleza e a poesia que ele ia descobrindo pelos cominhos que percorri.

            Eu também não sabia que ia guardar em minha alma tantos matrizes diferentes e tantos cantos; tantos retalhos de sonhos, tantos pedaços de vidas.

            E, hoje, não sou uma só.

            Sou a risada de tantos que passaram por mim. Sou a alegria de pessoas amadas e o olhar de crianças queridas.

            Fiquei sendo madrugadas estreladas de Estrela e o pranto das águas do Indaiá.

            Coração pesado de falas que saíram de bocas e lábios antigos; de cantigas-de-roda que brinquei em ruas sem nome: nego-fugido que fugiu pra tão longe que nunca mais achei.

            Vesti vestidos rodados, alados, que me levaram alugares de cetim e de nuvens. E eles estão guardados na arca de meus ontens.

            Andei tanto que meu olhar não é só meu: é o olhar de espanto do Chico-Torto e da Júlia-Pé-Moleque que arrastavam uma loucura mansa pela mansidão de minha infância, é o olhar-esperança que vi brilhar entre/os silêncios das aulas; ora, torna-se tão doce como o farol que clareia nossa sala nas noites de Natal. E esse farol vem dos olhos de meus netos...

            Minhas mãos não são apenas minhas; são mil mãos de afagos guardados.

            Meu pensamento é menino, é velho, é caduco. Às vezes poeta versos: às vezes pensa na aspereza da vida e fica amarrotado como papel velho.

            Às vezes, reconheço, em minha voz, uma voz tão antiga que não sei quem era seu dono...

            Meu coração foi guardando arco-íris e estrelas, luas e sons, risos e gestos.

            Ele foi vivendo e, com mil desvelos, pegou flores e jardins céu e poeira vermelha, morcegos e assombrações, abraços e valsas.

            Quando dei por mim, eu não era mais eu.

            Me transformei na vizinha do lado, em quem me ensinou coisas bonitas, em fadas, em Anas e Walquírias, em BEM e preces: sou sombra de minha mãe e pedaços de meu pai: a reza do padre, as ladainhas de maio, o A.B.C. da escola e o garfo do purgatório: o feitiço da mulher torta e as histórias de bruxas: sou o tear da Maria Cardosa e as anáguas engomadas: sou 6 horas da tarde e a comunhão de todo dia: sou uma casa grande, que ficou na minha parede e retratos antigos que me olham de outros lugares, de outros mundos.

            Sou a paz das tardes de Estrela e a cadência do Clube Velho de Dores.

            Sou as rendas que minha tia costurava e a música da máquina de minha mãe.

            Se algum dia, alguém quiser encontrar meu coração,  aí vai   o roteiro do caminho onde ele está:pegue a estrada, que vai de Dores   a Estrela... Ele está pendurado em alguma árvore, pode estar dormitando entre uma nuvenzinha cor-de-rosa... Meu coração pode estar rezando em uma igrejinha,  ou  pode estar brincando com crianças na porta de uma casa  amarela , de portas e janelas azuis...

            É  tão  fácil achar meu coração!  Ele deve estar em alguma curva de ESTRELADORES ou, quem sabe, na   porteira de uma rocinha singela de DORESTRELA...

 

            É, minha amiga. Vivi junto com você...

            Eu também não sabia que seria bagageira de tanta beleza, de tanta poesia!