Sobras
de Férias
Maria
(Para meus netos que
enfeitam meus dias de julho.)
Na esquina, o último
carro dá outro adeus para a vovó que
fica desconsolada no passeio da casa vazia. Mãos se agitam nas portas do carro
e eu espremo os olhos embaçados pra receber aquela saudade que já começa antes
de ser...
Entro sozinha.
Reparo na casa.
Não sei por onde
começo a reorganização das coisas. Olho tudo e prefiro pegar meu tricô para pôr
as emoções no lugar: dois juntos, laçada, um tricô, um meia....
As laçadas fizeram
um apanhado dentro de meu coração e, então, vou ajuntando algumas coisas,
as mais descombinadas possível. Como elas estavam dentro de casa,
não sei...Como no povo achava o lugar das camas, achava as meias, os tênis,
juro era um milagre! Desisto. A solidão me desanima.: dois juntos, laçada....
Deixo a tarefa para
o outro dia.
Segunda-feira: D.
Branca, a máquina não quer bater...Era a Vani, pedindo socorro...
Desço a escada, as
galinhas vêm pro portão, caladinhas, entortando a cabecinha, pensando que vou
jogar mais milho...Os dois coelhinhos tremem os bigodes, crentes que vão ganhar
ração, mais já estão mais do que tratados...
A máquina não vai mesmo
funcionar. O cesto derrama uma ruma de
roupa e eu fico impressionada de saber que aquilo tudo se acomoda nos
armários...
Resolvo rápido:
-Comadre Maria, será
que a senhora pode vir lavar uma mala de roupa pra mim?
A comadre pôde. E
chegou, como nos velhos tempos. Pano na cabeça, pito de palha atrás da orelha e
muitas novidades, quase aos gritos, de
uma enfiada só. A casa ficou alegre, até parecia ser outra....
Cá de cima, eu podia
ouvir a Comadre cantando enquanto esfrega as roupas nas mãos, em meio a um
monte de espuma que se espalhava pelo cimento , enchendo o ar de um perfume que há muito eu não sentia:
perfume de infância, de casa grande, cheia de filhos, antes da chegada da
máquina de lavar.
Até uma trempe a Comadre
inventou de arrumar no terreiro:
_ Tá doido, Comadre Branca, se não freuvê as roupas
brancas, ninguém dá conta de tirar o chujo...
E mais isso, mais
aquilo, de repente, o palco era outro: tacho na trempe, folhas de mamão na
fervura, gravetos fazendo um fogo assanhado: a grama, pasto exclusivo das
galinhas, ficou coberta de roupas ao sol, para clarear, Comadre...
Ah, até o batedouro
antigo, que está sem serventia, ela descobriu. E plaft, plaft, plaft, a roupa
apanhava em suas mãos ágeis...Enquanto batia a roupa, cantava alto, compassado. Se a música era esperta, a
roupa sofria na pedra do tanque:
“Nossa, nossa ,
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai, ai se eu te pego...”
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai, ai se eu te pego...”
Vani
ficou entusiasmada e cantava junto, às vezes até dançando com a vassoura.
_
Que que é isso, Vani, credo fico até com vergonha do povo passar e escutar
essa berreira... Vani finge não escutar e
varria dançando, num dueto com a Comadre...
.
Às vezes, a
lavadeira cantava uma música mais lenta
e, eu acho, até a roupa ficava romântica, e
as batidas eram lentas e delicadas: quase uma valsa de Strauss...
“Meu coração, não sei por quê
Bate feliz, quando te vê...”
Cá dentro, Vani e eu
juntávamos as coisas mais estapafúrdias dos netos: cordões, papéis, mentira,
plásticos-hoje quase não se usam papéis- de salgadinhos, restos de pipoca, mil
embalagens de GELADINHO, que até a vovó andou saboreando, para alegria e
gozação dos netos...
O almoço foi ao som
das mil novidades da Comadre: acidentes, mortes, pares separados, juntados,
amigados, namoridos, um vocabulário bem moderno, com algumas palavras que nunca
tinha ouvido.: NAMORIDO, por exemplo.
-Que que é isso, Comadre?
_Uai, Comadre, é
mais que namorado e menos que marido...
Muito bem explicado,
ela está afiada nos modernismos...
Varal cheio de
roupas murchas – não gosto de ver roupas vazias ao vento: me dá uma tristeza
desconhecida, um abandono....
Hora de apanhar as
roupas. ( No tempo do BEM, ele me ajudava
nesta tarefa... ele tirava a peça
do varal, eu dobrava e punha em uma bacia grande....)
Noitinha,
boca-da-noite...
Casa arrumada,
máquina no conserto, a Comadre se foi, dando mil adeuses, mil abraços, mil
promessas de voltar.
E eu fico pensando
que bom seria se a máquina não tivesse conserto... Se nem um filho inventasse
de me dar outra...
A comadre voltaria,
ia ser tão bom, tão alegre!
Hora de fechar a
casa – fico sozinha de novo, com o silêncio cantando nos cômodos vazios.
Vejo uma ponta de
linha caindo do guarda-roupa, lá no alto. Vou puxando, puxando, devagarinho,
devagarinho...
Dois papagaios de
plástico, um rosa e outro vermelho, caíram sobre minha pobre cabeça, pousaram
sobre meus ombros cansados, como asas protetoras. Desembaraço-me das
linhas...São as pipas que ficaram esquecidos lá em cima, longe da confusão cá
de baixo...É o novo esconderijo que o Artur, meu neto, arranjou para seus
brinquedos... Um é dele, outro do Lucca, amigo que vem junto, como se fosse
outro neto....
Aliás, an
passant, os papagaios quase não
saíram do lugar: o bendito computador tomou todo o tempo de meus netos aproveitarem
o vento, o sol, a alegria de correr, esfolar joelhos....
Ligo a
televisão.Leonardo canta:
“Não aprendi dizer
adeus....
Não sei se vou me
acostumar...”
Meu coração
responde, concordando;
-Eu também não...
Nunca vou aprender
dizer ADEUS, NUNCA...
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Dores do Indaiá, 27 de julho de 2016.