terça-feira, 6 de setembro de 2016


Sobras de Férias

Maria

(Para meus netos que enfeitam meus dias de julho.)

Na esquina, o último carro dá outro  adeus para a vovó que fica desconsolada no passeio da casa vazia. Mãos se agitam nas portas do carro e eu espremo os olhos embaçados pra receber aquela saudade que já começa antes de ser...

Entro sozinha.

Reparo na casa.

Não sei por onde começo a reorganização das coisas. Olho tudo e prefiro pegar meu tricô para pôr as emoções no lugar: dois juntos, laçada, um tricô, um meia....

As laçadas fizeram um apanhado dentro de meu coração e, então, vou ajuntando algumas coisas, as  mais descombinadas  possível. Como elas estavam dentro de casa, não sei...Como no povo achava o lugar das camas, achava as meias, os tênis, juro era um milagre! Desisto. A solidão me desanima.: dois juntos, laçada....

Deixo a tarefa para o outro dia.

Segunda-feira: D. Branca, a máquina não quer bater...Era a Vani, pedindo socorro...

Desço a escada, as galinhas vêm pro portão, caladinhas, entortando a cabecinha, pensando que vou jogar mais milho...Os dois coelhinhos tremem os bigodes, crentes que vão ganhar ração, mais já estão mais do que tratados...

A máquina não vai mesmo funcionar. O cesto  derrama uma ruma de roupa e eu fico impressionada de saber que aquilo tudo se acomoda nos armários...

Resolvo rápido:

-Comadre Maria, será que a senhora pode vir lavar uma mala de roupa pra mim?

A comadre pôde. E chegou, como nos velhos tempos. Pano na cabeça, pito de palha atrás da orelha e muitas novidades,  quase aos gritos, de uma enfiada só. A casa ficou alegre, até  parecia ser outra....

Cá de cima, eu podia ouvir a Comadre cantando enquanto esfrega as roupas nas mãos, em meio a um monte de espuma que se espalhava pelo cimento , enchendo  o ar de um perfume que há muito eu não sentia: perfume de infância, de casa grande, cheia de filhos, antes da chegada da máquina de lavar.

Até uma trempe a Comadre inventou de arrumar no terreiro:

_ Tá doido, Comadre Branca, se não freuvê as roupas brancas, ninguém dá conta de tirar o chujo...

E mais isso, mais aquilo, de repente, o palco era outro: tacho na trempe, folhas de mamão na fervura, gravetos fazendo um fogo assanhado: a grama, pasto exclusivo das galinhas, ficou coberta de roupas ao sol, para clarear, Comadre...

Ah, até o batedouro antigo, que está sem serventia, ela descobriu. E plaft, plaft, plaft, a roupa apanhava em suas mãos ágeis...Enquanto batia a roupa, cantava  alto, compassado. Se a música era esperta, a roupa sofria na pedra do tanque:

 

“Nossa, nossa ,
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai, ai se eu te pego...”

 

Vani ficou entusiasmada e cantava junto, às vezes até dançando com a vassoura.

_ Que que é isso, Vani, credo fico até com vergonha do povo passar e escutar

 essa berreira... Vani finge não escutar e varria dançando, num dueto com a Comadre...

 

.

Às vezes, a lavadeira  cantava uma música mais lenta e, eu acho, até a roupa ficava romântica, e      as batidas eram lentas e delicadas: quase  uma valsa de Strauss...

 

“Meu coração, não sei por quê

Bate feliz, quando te vê...”

 

Cá dentro, Vani e eu juntávamos as coisas mais estapafúrdias dos netos: cordões, papéis, mentira, plásticos-hoje quase não se usam papéis- de salgadinhos, restos de pipoca, mil embalagens de GELADINHO, que até a vovó andou saboreando, para alegria e gozação dos netos...

O almoço foi ao som das mil novidades da Comadre: acidentes, mortes, pares separados, juntados, amigados, namoridos, um vocabulário bem moderno, com algumas palavras que nunca tinha ouvido.: NAMORIDO, por exemplo.

-Que que é isso, Comadre?

_Uai, Comadre, é mais que namorado e menos que marido...

Muito bem explicado, ela  está afiada  nos modernismos...

Varal cheio de roupas murchas – não gosto de ver roupas vazias ao vento: me dá uma tristeza desconhecida, um abandono....

Hora de apanhar as roupas. ( No tempo do BEM, ele me ajudava  nesta tarefa... ele  tirava a peça do varal, eu dobrava e punha em uma bacia grande....)

 

Noitinha, boca-da-noite...

Casa arrumada, máquina no conserto, a Comadre se foi, dando mil adeuses, mil abraços, mil promessas de voltar.

E eu fico pensando que bom seria se a máquina não tivesse conserto... Se nem um filho inventasse de me dar outra...

A comadre voltaria, ia ser tão bom, tão alegre!

Hora de fechar a casa – fico sozinha de novo, com o silêncio cantando nos cômodos vazios.

Vejo uma ponta de linha caindo do guarda-roupa, lá no alto. Vou puxando, puxando, devagarinho, devagarinho...

Dois papagaios de plástico, um rosa e outro vermelho, caíram sobre minha pobre cabeça, pousaram sobre meus ombros cansados, como asas protetoras. Desembaraço-me das linhas...São as pipas que ficaram esquecidos lá em cima, longe da confusão cá de baixo...É o novo esconderijo que o Artur, meu neto, arranjou para seus brinquedos... Um é dele, outro do Lucca, amigo que vem junto, como se fosse outro neto....

Aliás,  an passant,  os papagaios quase não saíram do lugar: o bendito computador tomou todo o tempo de meus netos aproveitarem o vento, o sol, a alegria de correr, esfolar joelhos....

Ligo a televisão.Leonardo canta:

 

“Não aprendi dizer adeus....

Não sei se vou me acostumar...”

 

Meu coração responde, concordando;

-Eu também não...

Nunca vou aprender dizer ADEUS, NUNCA...

 

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Dores do Indaiá, 27 de julho de 2016.

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