domingo, 26 de abril de 2015


UMA COISA PUXA OUTRA

Maria

(Esta crônica é para o leitor, LÁZARO DA SILVA DUTRA JÚNIOR, DE PALMAS -TOCANTIS , que aprecia as crônicas da Maria. Obrigada!)

 

          Duas horas da tarde.Sozinha em casa. O sol aumentava o tamanho dos cômodos.

A Quaresmeira fazia sombras  aqui e ali, bordando espaços sombrios na claridade.

         Percebi que sombras outras estavam querendo se aninhar em meu coração...

_Por que seria?

Fui andando pela casa. Tudo absolutamente nos lugares. Tudo limpo, organizado...

Pensei: casa mais triste, mais arrumada! Parece casa de velha ranzinza...

Resolvi: em um quarto, abri a máquina-de-costura, espalhei retrozes coloridos sobre a mesa, deixei a velha tesoura de qualquer jeito...

Em outro cômodo, abri portas de armários, coloquei sapatos na janela, deixei cabides sobre a cama, como se estivesse escolhendo roupas para uma festa.

Na salinha de televisão, baguncei um pouco as agulhas de tricô que me acompanham no sofá velho, pus novelos de lã na mesinha cheia de porta-retratos... O povo me olhava – desconfiado- através das molduras. Percebi um brilho nos olhos das mulheres – elas entendem de lãs e, parece, gostaram do novo brilho colorido...

Troquei bolsas antigas de lugar – há muito tempo elas acordam e dormem do mesmo jeito...- só os netos mexem nelas, abrem tudo, deixam todas meio abertas, mostrando forros puídos e surrados: são relíquias de família....

Continuei minha caminhada solitária.

_ Nossa, que cozinha mais sisuda! Que falta de vida!

Tirei copos e canecas dos armários: tomei café, deixei um restinho no fundo, como fazem minha turminha e minha turmona (Em casa de vó, todos se tornam crianças, ficam por conta das prosas e brincadeiras...)

Na mesa grande da copa, deixei vidros de biscoitos , sequilhos para uns, de Maizena para outros, restos de pão de São-José, que hoje é o pão sovado... (Uma coisa puxa outra:um dia, eu pedi a uma das netas, à bela Isabela para comprar desse pão, que ela gosta – ela escreveu no papelzinho, para não esquecer – PÃO SOLVADO...)

Até hoje a turma fala assim, pirraçando a bela prima, que já é uma senhorita...)

Peguei cadernos, lápis e livros e deixei tudo no birozinho de madeira, que foi do BEM- é outra relíquia da casa. (Uma coisa puxa outra: Eduardo era pequeno e observou o trabalho que os homens da mudança – inclusive o carroceiro  - faziam pra passar o birô em uma porta: era birô pra cá, birô pra lá, o birô não passa, ta-ta-ta... Mas tarde, bateram à porta: Eduardo atendeu e falou: PAPAI, O SÔ BIRÔ tá te chamando... Era o Sô Antônio Carroceiro...Ele pensava que Birô era o nome do homem....)

Aí, sim! Minha casa, agora, tinha alma! Era uma casa viva!

Andei devagar por entre os cômodos todos, escancarei as janelas para o azul entrar na carona do sol dourado.

Na verdade, foi meu coração que ficou azul e brilhante. Comecei a cantarolar: É tarde, já vou indo, eu preciso ir embora, até amanhã, mamãe quando eu sai, disse filho, não demora em ...

(Uma coisa puxa outra: Não há de ver que  filhos e netos chegaram, de verdade? Meu coração os puxou...A saudade os trouxe, de surpresa...)

Nem precisei cantar mais: A casa toda cantava!

De repente, a casa ficou mocinha de novo: as filhas abriram vidros de esmaltes, as netas misturavam cores e um cheirinho bom  se espalhou no ar. Uma pintava os cabelos da outra, sugeriam cores, luzes e novos cortes. Enquanto isso, a vovó preparava o café com pão de queijo...(Uma coisa puxa outra: lembraram-se se do primo que, distraído  com a namorada, deu uma mordida no pão de queijo -que estava pelando de quente – e ficou com o bico todo empipocado, por dias e dias....)

 

À noite, luzes acesas, tudo ligado, aquela doce bagunça que encanta a vida das velhas- vovós-velhas...

Todos dormiram e sonharam sonhos lindos, porque em casa de vó não há pesadelos...

Juro, não vou arrumar minha casa tão cedo, sempre vou deixar uma baguncinha por perto! Meu coração já se acostumou e prefere um fuá a uma casa sem alma...

 

 

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Dores do Indaiá, 14 de março de 2015.

 

 

               

               

Já se passaram alguns anos de quando escrevi esta crônica. Mas, continuo com a mesma opinião....

 

 

 

PROPAGANDA POLÍTICA

Maria

 

 

 

                          Meu caminho para o trabalho está seco, esfarelado. A grama, esturricada. O sol, com um olho deste tamanho, torrando o mundo cá em baixo.

         A seca entrou brava: ainda bem que o cerrado tem casca-grossa e se mantém de pé nas pernas tortas.

         Os jardins desmaiamorrendo de sede, florezinhas com a boca aberta, esperando  uma gotinha d’água ou o frescor do orvalho da noite.

         Só a Mulata-da-sala resiste. Nasce em qualquer quebradinho do passeio, em qualquer rachadinho o muro.

         Não há primavera nem inverno para a alegre florzinha. Contenta-se em enfeitar o caminho de quem passa. A qualquer hora, ela está lá. Põe sua carinha de fora, balança a cabecinha-de-flor a qualquer brisa que dançar por perto.

         Hoje, vi uma Mulata-da-sala que há muito tempo não via: toda branca com a boquinha pintada de batom vermelho...

         Ela está lá, num cantinho do muro velho, junto com outras- um buquê colorido.  Singelas, não pedem nada. Só querem ver o sol nascendo, os caminhantes passando e, quem sabe, um luar para enfeitar a noite das flores.

         Eu segui meu caminho com o coração alegrinho, quase dançando no peito. Só porque vi uma florzinha branca de batom que, há muito, eu não via!

         No muro velho e escuro, restos de propaganda política da última eleição: VOTE EM MIM!

          E, no quebradinho esfarelado, na janelinha roída, a florzinha fresca e bela com sua carinha de fora...

         Meu caminho velho ficou novo. Meus passos velhos tiveram mais leveza e eu pensei:

         _ Na próxima eleição, vou votar naquela florzinha   branca de batom vermelho.

         De todos, foi o mais belo programa de governo  apresentado: APENAS ENFEITAR O MUNDO!                                               

 

SARAU NA CALÇADA

Maria

 

Aula Particular. Literatura. Intertextualidade. Final de curso. ENEM chegando. Cerca daqui, cerca dali. Alunos e professora baratinados.

_ Olá! Vamos entrando, moçada!

Livros espalhados. Olhares meio assustados. Cansaço nos gestos.

Então, um deles falou:

-Por que você não veio ontem, Émerson?

_ Eu tive ensaio da Banda e não podia faltar... Vai ter show sábado...

Pronto. Todos acordaram. A professora quis saber:

_ Gente, tem Banda aqui em Dores e eu nem sabia!

-Émerson, o que você toca na Banda?

_ Guitarra, violão...

A conversa se alastrou! Adeus, ENEM! Adeus, intertextualidade!

Três alunas, lindas, moderninhas também tocavam! Em Grupo de Jovens, no coro da igreja, em festinhas...

Enquanto eles matracavam sobre tudo, menos Literatura, a professora quebrava a cabeça para pôr a turma nos eixos... Aí...

_Gente, quem conhece a música Monte Castelo, da Legião Urbana? Todos conheciam e a cantoria começou a rolar na sala encalorada... Renato Russo até “chegou” para ouvir sua letra cantada tantos anos depois...

_ E Epitáfio, dos Titãs, quem conhece?

Não precisou de mais nada: todos se puseram a cantar: O acaso vai me proteger...

Eu pensava: Pronto, e agora, como vou fazer essa moçada parar?

_ Tudo bem, tudo lindo, mas... agora, é aula de verdade!

Entre muxoxos, comecei a falar sobre de onde veio a letra de Renato Russo.

Abrimos apostilas, as cabeças se juntavam em volta dos livros, até que conseguiram encontrar a matéria de que precisavam. Ficaram abismados de saberem que Renato Russo foi até aos Coríntios e a Camões pra escrever seus versos!

_ Os palpites choveram:

_ Nossa, pensei que ele tirou tudo da cabeça dele!

_ Eu nunca pensei que ele soubesse nada de Bíblia e de Camões...

_ Desisto de ser poeta...

Fomos terminar a aula perto do computador, onde ouviram a música, cantaram junto, sorriam uns para os outros, com cara de “Ah, agora nós estamos cantando sabendo a história da letra”!

Durante três dias, as aulas renderam e a intertextualidade passou a ser a matéria preferida. Ninguém queria treinar ortografia, gramática, ninguém queria mais fazer redação...

E eu pensava:

_Bendita música!

Vimos, ainda,o poema que serviu de base para os Titãs, em Epitáfio. Jorge Luís Borges foi admirado e elogiado por eles que, antes, nem queriam saber de poesia...(Quando muito, adoraram NEOLOGISMO, de Manuel Bandeira, por causa do verbo criado pelo poeta e que é o mais importante para eles, os jovens – que vivem enamorados - TEADORAR...)

          O computador mais uma vez cantou com eles e os Titãs:” Devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer...”

Fagner foi muito festejado com CANTEIROS e acharam o compositor muito sensível em prestar homenagens a tantos poetas numa só letra...

Dessa vez, não precisamos ligar o computador: o coração da professora sabe a música de cor e, fui acompanhada pela turma, que seguiram a letra na apostila...

_Assim, disse uma garota, acho que eu dou conta de escrever uma letra de música...

Aproveitei a dica e eles se puseram a escrever paráfrase, paródias... Fingi que não vi, mas houve troca de letras apaixonadas entre dois candidatos a conquistarem o coração de uma das colegas – e ela fez a cara melhor do mundo!

O ENEM chegando, terminamos o curso, com mil promessas de serem atenciosos às questões.

Sairam adeusando saudades, adeusando esperanças, adeusando futuros.

_Vamos voltar para cantar mais, pra estudar mais Literatura!

Eu pensei – “Ah, se o futuro  fosse feito só de poesia, eles iam brilhar...”

Semana seguinte. Tarde morna e azul. Música na calçada. Vozes conhecidas chamando meu nome...

Não acreditei! Meus alunos cantando, ao som de instrumentos, a música folclórica CUITELINHO, que os encantou nas aulas...”Cheguei na bera do porto/onde as ondas se espaia...

De presente, meus três pés de murta, carregadinhos de mil florinhas brancas, derramaram uma chuva de estrelinhas sobre os componentes da poética banda.

Ficamos coroados na calçada, enquanto a vizinhança chegava à porta para ouvir a cantoria...

Deixaram marcas de seus passos no tapete branco que as murtas lhes prepararam...

_ D. Branca, a senhora ficou parecendo uma rainha!

Foi um instante muito lindo na minha tardia carreira de professora particular, já na velha/juventude/velha...

Mas, que em vez em quando, ainda se transforma em rainha...

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Dores do Indaiá, 20 de fevereiro de 2015.

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 25 de abril de 2015

ESCREVER COM O CORAÇÃO
Maria.
 
 
 
(Para Maria Inês Miranda de Carvalho, de Belo Horizonte.)
 
 
Verdade.  De tanto tentar transmitir meu pensamento por meio de palavras escritas, descobri que  o coração escreve mais bonito do que as mãos. Descobri que a alma sabe ditar palavras mais doces e mais poéticas...
Encontrei sons e canções em palavras. Descobri que, no alfabeto, há letras musicais, enfeitando palavras que, sem elas, seriam duras e frias... Percebi que pequenas letras modificam o sentido de uma palavra, dão- lhes brilho, suavidade, movimento. Ah, se a gramática permitisse, eu escreveria PÁSCOA só com a letra Z : ela ficaria carregada de PAZ, riqueza que eu desejo a quem lê meus escritos. E, também, mudaria BORBOLETA para FLORBOLETA, porque ela é  tão linda como se fosse uma flor esvoaçando...     Já  transformei o nome BARBACENA em BÁRBA(RA)CENA, uma palavra-valise que carrega,    em seu bojo, toda a barbaridade que o nome  trazia , em  meus tempos-meninos. Felizmente, hoje a bela Barbacena é a Cidade das Rosas.
Maria Inês Miranda de Carvalho é artista, pinta quadros  com as tintas da alma. Desenha com as cores ditadas pelo seu coração. Além do mais, é prima de D. Antônio Affonso de Miranda, ex-vigário de Dores do Indaiá, onde deixou lembranças inesquecíveis.
Sou amiga de Maria Inês há um bom tempo, através do jornal/REVISTA  O LUTADOR. Ela descobriu meu coração antes de descobrir minha pessoa.Só depois, descobrimos afinidades – outra riqueza das palavras: percorrer o caminho de afetos, sem interesse algum...

Aniversário da amiga: quis enviar-lhe uma lembrança escrita por mim. Mas, pobre de minhas palavras!  Preferi fazer o caminho inverso, festejando seu dia, com um presente que ela me fez... 
Nas asas da Revista, aí vai a ORAÇÃO DA FAMÍLIA, com a qual Maria Inês me presenteou em um Natal.

Claro, eu a rezo de cor e, até hoje, não sei se ela é um poema ou uma oração. Vejam que maravilha de palavras Dom Marcos Barbosa usou!
Peço-lhes que enriqueçam meu abraço para Maria Inês, juntando-se a mim nesta homenagem que lhe faço, rezando as belas palavras que guardam a minha família, a minha casa e o meu coração.

Podem rezar, podem poetar: Deus vai entender...
  Deus é poeta, eu juro!

E... FELIZ PÁZCOA, com Z, carregada de PAZ 


ORAÇÃO DA FAMÍLIA
Dom Marcos Barbosa.

Bem debaixo, Senhor, da Tua asa, coloca nossa casa.
Nossa mesa abençoa, e o leito e o linho, guarda o nosso caminho.
Brote em torno o jardim, frutos e flores, nossa boca, louvores.
Conserva pura a fonte de cristal, longe o pecado e o mal.
Repele o incêndio, a peste, a inundação, reine a paz e a união.
Bem haja na janela a luz do dia, na parede, MARIA.
Encontre a noite quieta a luz acesa, quente sopa na mesa.
Batam na porta o pobre, o viajor e Tu mesmo, Senhor.
Tranquilo seja o sono sob a cruz que a outro sol conduz.
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Dores do Indaiá, Domingo da Páscoa de 2015.

sexta-feira, 24 de abril de 2015


     UM POUCO DE HISTÓRIA                                                                                                                                           
                       MARIA

Olá, amigos! 
 Dr. Antônio Carlos Oliveira, dorense,  além de ser médico laureado em Psiquiatria, também é poeta e autor de vários livros científicos.
Outra faceta de seu perfil cultural: faz pesquisas sobre nossa história, descobrindo informações importantes e verdadeiros tesouros do passado de Dores do Indaiá. 
Ele passou, para meu filho Eduardo, o link onde  podemos encontrar uma relíquia: um jornal antigo de 1898- quando nossa imprensa começava a dar os primeiros passos pelas mãos de Paulino de Paula  Souza, c.c D. Afra Gontijo de Souza. O casal teve vários filhos, sendo Carminha Gouthier, a festejada poeta, glória de nossas Letras. 

A Rua Paulino de Sousa é uma homenagem ao primeiro jornalista de Dores do Indaiá, onde fundou a primeira gráfica, editando o Jornal YNDAIÁ.
Obrigada ao Dr. Antônio Carlos Oliveira, poeta já homenageado na coluna NOSSOS POETAS, de minha autoria,  cuja matéria será postada em breve neste BLOG.

É só abrir o link abaixo

http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/jornaisdocs/photo.php?lid=22210

segunda-feira, 13 de abril de 2015


SAUDADE  FEITICEIRA.

Maria

 

 

“Não existo sozinha/Meus olhos são luzes de outros olhos/Que sondaram o infinito antes de mim...

Meu horizonte é tecido de ontens/Minha face são tantas /Bordadas de nuvens/Tecidas de sol”... (Fusão – Poema )

 

         E hoje, sou  muitas.

         Sou madrugadas antigas, sou o canto das águas do Indaiá. Sou as valsas  rodadas, dançadas no Clube Velho. Sou a gravatinha fitada da Escola Normal...
         Criei asas nas saias rodadas , anáguas rendadas, aladas, asas de anjo que  me  levaram a mundos de nuvens e cetins.

         Sou as ruas de terra, recebi mil batismos: Rua das Baratas, Rua das Viúvas, Rua de Baixo... Ou Rua Bela ou Rua do Meio...

         Meu coração é feito  do melado de rapadura,  adocicado  por mangas cheirosas e   jabuticabas de mel.

          Se fecho os olhos, a saudade faz uma bruxaria no meu coração e eu sou o telhado de casas avoengas que espiavam  o arraial nascente. Pouso na sineira antiga e canto ladainhas com os velhos sinos velhos  da Igrejinha  primeira que rezou nessa terra vermelha: a Igrejinha de São Sebastião.

          Saudade feiticeira!  Carrega meu coração  para  o  Largo do Bem-Te-Vi e me conta histórias dos velhos tropeiros ... Entro em seus ranchos poéticos e escuto segredos do ouro dos Goiazes... Encho embornais  de  matulas na venda da Carioca e sigo em frente, plantando arraiais, plantando palavras, plantando histórias de além-mar...

           Ah, saudade feiticeira! Ela entra em  meu coração, apronta mágicas e o carrega por horizontes azuis, desenhados pela poesia...

         Por suas mãos tenho mil  faces : acordo com rosto de   de pôr- de-sol e vou dormir nos braços da Serra Azul da Saudade.  E é tanto azul  que ele se derrama no  manto bento da Senhora das Dores... A Santa Azul que  mora num altar, ladeada por anjos tocheiros. Às vezes, a saudade  faz outra bruxaria e eu fico com oito anos... Então, posso coroar a Santa Azul e brincar com as estrelas e luas de sua coroa  de sol... 

         Se fico cansada, a feiticeira voa comigo e eu cochilo com  os cânticos das procissões , e as ladainhas cantadas por vozes antigas. Cochilo com as danças do Congado e pago promessas ao redor da Igreja do Rosário...

         Gosto de viver  em companhia da minha amiga feiticeira: ela me traz rostos antigos e falas      queridas. Ela me diz versos  bonitos de poetas que não conheci...A feiticeira   me traz rosto de mãe, falas de pai, risos dos filhos pequenos. Outras vezes, me  pego de saia comprida, bichas de ouro nas orelhas e camafeu    numa bela correntinha. De repente, tenho quinze anos e  ouço serenatas românticas ao luar... 

         Não tenho medo da palavra PASSADO! É lá  que guardo quintais perfumados, casarões antigos,  e Natais encantados. É no passado que encontro histórias.Foi no passado que prendi - para sempre- um moço bonito com um lacinho azul na  lapela- magia das barraquinhas de maio...

 

          _ Quem falou que saudade é tristeza?   Saudade - para mim- é quase alegria – tem rosto, tem alma, tem voz e coração. É diferente de nostalgia .

         Nostalgia é saudade com uma roupagem de névoa, deformada, mal desenhada... Nostalgia é uma saudade   que  não consegue chegar ao  meu coração... Ronda, ronda, incomoda, incomoda e se vai... Saudade , não: chega, sente-se em casa, fica   morando comigo...

         Sou  tecelã do tempo, aquele que vigio dia e  noite, para tentar aprisioná-lo... Se  penso em deixar o tear encantado, logo aparece uma ponta de linha para eu puxar e tecer, tecer, tecer...

         Deus  meu, agora a saudade feiticeira fez uma grande mágica em meu coração:  ganhei de presente o  PASSADO de  minha terra, lugar encantado que fez sua  morada na Terra do Infinito. Um lugar onde tudo dormita no azul, aprisionado em fotos   com rosto de eternidade.

         Dê as mãos à saudade feiticeira: caia no colo da tradição, brinque de roda com a nossa Cultura. Pise  com passos de  nuvens, para entrar no reino encantado de nossa HISTÓRIA.

         Seu coração ficará bento, pensando que tem poderes mágicos...

         Acredite – tudo é  magia da Saudade Feiticeira...

 

         Dores do Indaiá, 14 de agosto de 2012.
Retalhos de Quaresma
Maria

 

Andei vasculhando meu arquivo de crônicas. Achei algumas sobre a Quaresma...Reparto com vocês a poesia que existe no mundo quaresmeiro dos pequenos. Hoje já é dia 21 de abril de 2014 – mas a poesia permanece...
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         Aprendi, com as crianças, que elas convivem com Jesus, uma das três pessoas da Santíssima Trindade, de igual para igual. O Deus Criador – Deus Pai -e o Deus Espírito Santo estão muito longe do alcance dos pequenos. Acho que, só mais tarde, o PAI e o ESPÍRITO SANTO sairão dos catecismos para fazerem parte do coração de cada uma das crianças que passaram por mim.

         Uma vez, fiquei insistindo, maçando demais sobre o assunto, frisando muito a figura do Espírito Santo, em forma de pomba, e  uma de minhas filhas me cortou:

         _ Ah, não, mamãe, não entendo nada desse DEUS-PASSARIHO!

 

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         Agora, o Deus/Jesus, sempre notei, era encarado como um menino levado, como um moço legal, como um homem comum. Por isso, não tinham –e não têm -a menor cerimônia com o Jesus.

        

         A   Helen, filha de minha amiga Maria Luísa, tinha uns cinco anos.

         Viva, esperta, liderava uma brincadeira naquela tarde azul.

De repente, uma coleguinha  falou um nome-feio.

Foi um bafafá: era Quaresma.

_Não pode falar nome –feio! Deus escuta tudo... Deus vê tudo...

E a Hélen, doida para continuas a brincadeira:

_ Vamos brincar, gente! Tem nada, não!  Deus morreu ontem! Eu até fui no enterro dele com  com a mamãe!

E a turma continuou a cantar na “ maior bondade”, como falamos por aqui....

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 Minhas meninas estavam brincando  no meu quarto, onde há um crucifixo grande e antigo.  

Corre daqui, corre dali, uma delas falou:

_Assim não vale! Assim não vale!  Você olhou, você olhou!

_Não olhei, juro, juro que não olhei!

_ O Deus tá de prova ! Ele vê tudo!

Cheguei ao quarto bem na hora em que ela estava virando o crucifixo para a parede.

_Que é isto, menina? Você vai quebrar o meu crucifixo! Para com isto, para!

E ela na maior responsabilidade:

_Acho que Ele tá enredando tudo pra ela... Agora, virado pra parede, quero ver Ele contar o esconderijo...

 

 

Sexta-feira da Paixão. Almoço da turma toda.

A avó/cozinheira se via às voltas com a turma dos pequeninos: uns tinham mais de 7 anos e não podiam comer carne.

_ Só um pedacinho, vovó!

A Isabela, muito falante, muito pra frente, liderou uma comissão de primos...

_Vamos lá falar com Ele! Vamos perguntar se pode...

Acompanhei de longe, para ver a ideia dela.

Voltaram triunfantes!

_Pode, vó, todo mundo pode comer carne !

_Como assim?

_Uai, nós fomos lá no Jesusinho da sala (presépio) e eu perguntei pra Ele...

__ Ah! É! E o que foi que Ele falou ?

_ Ele ficou rindo... Então, claro que pode!

    Aí, eu quis saber:

_Por que você não foi ao meu quarto? É mais perto...

_Nem, de jeito nenhum.... Aquele lá é gente grande...

 

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A Alice já nasceu vaidosa: vive de esmalte  colorido, com strass. brilho nos lábios, uma graça.

Apareceu aqui, em plena Semana Santa, com um esmalte vermelho vivo. Eu brinquei:

No meu tempo, na Quaresma, a gente nâo podia usar roupa  muito estampada e... e... nem esmalte vermelho....

_ Por quê?

A Globinha – apelido da Alice- aqui em casa -ficou pensativa e eu me esqueci daquilo.

Passado um tempo, volta a Alice nos seus esplendorosos 10 anos:

         _E assim, vó, dessa cor  pode?  

         Desmaiei de rir... Ela pintara as unhas todas, inclusive as dos pés, de esmalte preto... E ainda caprichou nos arabescos roxos....

 

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         Da turma dos  miudinhos, o Artur é o que já consegue conversar direitinho. Com 4 anos, aprende tudo na escolinha.

         Dia deste, eu vinha embora para Dores.  E ele é apaixonado pela vovó Brrrrrranca. Então, já viu, ia ser um choro só....

         Minha nora quis desfazer o clima de emoção e falou:

         _ Nossa, Artur. Conta pra vovó como é a poesia que  você aprendeu, conta!

         _ Qual?

         _ A do arco-íris...

         E ele,  com os olhinhos molhados, recitou para a vovó - com voz de choro- um poeminha  do qual eu só consegui guardar:

                           “E o Deus pegou o pincel

                                 E pintou um arco-íris

                                 Lá no céu....”

        

_Será por que que a vovó  só  via, pra todo lado  que olhava,um arco-íris  bem pertinho de seu olhar?

         ‑ Será por quê ?

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   Dores do Indaiá, 12 de março de 2008-

                                            (Para a minha neta Fernanda que hoje faz 11 anos e que me ensinou a passar meu primeiro e-mail)

domingo, 12 de abril de 2015


FILA DE ESPERA

Maria

_ Será que é aqui?

_ Temos que esperar... Não podemos furar a fila....

E os dois chegantes, cansados do longo voo, sentaram-se em uma nuvem fresquinha, antes que tentassem outra vez...

_ Temos de esperar – só depois de revistarem nossa bagagem, nos darão o VISTO...

_E dizem que são ranzinzas até dizer chega!

Enquanto esperavam, puseram seus tesouros ali por perto: a fila estava enorme e nada da porta ser aberta...

Lá também havia uma revista rigorosa de documentos e pertences: apesar de ser no infinito lindamente azul,  o lugar de origem não recomendava ninguém, apesar de ser outro lugar lindamente azul: a Terra...

Havia anjos escalados  para a tarefa- uns separavam documentos:

_Veja aqui, Querubim! Não tenho mais lugar para guardar tantos cartões de crédito... E Carteira de Identidade, e Cartões de Vacina

_ E eu não sei onde colocar tantos celulares! Alguns até choram por causa deles...Veja que emaranhado de aparelhos...

_Pois eu....- disse uma anjinha com voz de violino- eu não sei onde colocar mais tantos batons, tantos estojos de maquiagem...O Departamento Feminino é o mais volumoso... Vejam ali naquela nuvem cor-de-rosa...

A nuvem era um verdadeiro caos: bolsas de todos os tamanhos, de todos os modelos, de todas as cores se misturavam a mil marcas, a mil franjas, a mil pedrarias, lantejoulas e miçangas... Sapatos de todos os tipos, rasteirinhas, sandálias, botas... Uns modelos eram tão altos, tão estranhos que um anjo velho resmungou:

_ Isso se parece mais com uma poltrona do que com um sapato – valha-me Deus!

 Anjinhas pequenas escapuliam de suas mamães/anjas e se esbaldavam provando roupas, pasando pinturas, experimentando sapatinhos coloridos,  brincando de ser gente...

         O Serafim do Departamento de Joias estava literalmente sumido em meio a colares, anéis, pulseiras, pingentes e tiaras... Havia algumas peças tão prosaicas que ninguém sabia pra que serviam... Seria para ser pendurada no nariz? Nas orelhas, No umbigo?  Vai ver o que pensa aquele povinho lá da Terra – só eles entendem pra que tanta bugiganga... Enfim, tenho que fazer meu trabalho e não posso nem piscar – essas anjinhas não são anjos ...

         São Rafael, de espada em punho, guardava o imenso cofre, cheio de dólares, , pesetas, euros, reais, dinares, dobras, francos, libras, patacas...Era só um descuidozinho para o povão tentar invadir o cofre...

Mais adiante, bem perto do sol, uma nuvem quase não aparecia, tamanha era sua carga... Uma anja/professora escrevera uma placa, com letras de raios de lua: LOJA DE  ROUPAS DA TERRA. Era tanta confusão, que, na sua porta, havia verdadeiro exército de anjos e santos...

E, a todo momento, havia ameaças de invasão...

A cozinha do infinito já não conseguia servir tantos pratos, todos feitos à base de sorvetes e cremes  de nuvens, sopas de estrelinhas- cozidas ao vapor  de raios de sol...

E nada da fila andar!

Outra seção movimentada era a de whatspps, novo invento do povinho da Terra: os anjos da guarda eram muito pacientes e não se cansavam de explicar que, lá no infinito, não precisavam daquele aparelho ...Mas, não adiantava nada... O chororô era geral...

Coitado do galo do presépio, já estava rouco de tanto cantar, anunciando mais chegantes... São José até precisou passar um pito no Menino Jesus que brincava de roda com anjinhos que estavam treinando pequenos voos com suas asinhas nascentes:

_Que que é isso, Jesus? Estão rindo do coitado do galo?

_Uai, papai, ele tá desafinado... (Esqueci de explicar – o Jesusinho gostava de falar em minerês...)

         Outra porta nem dava para ser vista, de tanta gente tentando entrar: era o BRECHÓ DOURADO. Preços módicos, havia de um tudo- qualquer freguês encontrava um produto, mesmo que não soubesse para que servia... Era o velho costume da Terra.

Porém, numa nuvem meio cinzenta, escondida entre névoa fria, havia uma enorme barraca que ninguém procurava: os guardiães até cochilavam à porta da nuvem...

 Uma velha enxerida puxou o sentinela pela manga da túnica e quis saber qual era a mercadoria estocada ali, sem procura, sem oferta..Em cima da porta esquecida, podia-se ver uma inscrição com letras graúdas – DOAÇÕES .

A velha ajustou os óculos para enxergar melhor e nem se assustou com o que via – igualzinho ao que acontecia cá embaixo: eram montes e montes de livros... LIVROS!!! De todas os tamanhos, de todas as épocas, de todas as matérias e de todos os autores do mundo...

_ Por que ninguém pega livros?

O Guardião- Mestre explicou com voz triste: É a tecnologia, agora só querem saber de livros virtuais...E olha que muita gente, em outros tempos já furou a fila com pequenos pacotes de livros...

A velha até ouviu o suspiro antigo do Guardião_Mestre... (pelo visto, a tecnologia e a informática já chegaram até aqui...)

Desanimada, a senhora idosa sentou-se e acomodou suas talhas mais importantes em seu colo magro...

Sabiamente, concluiu baixinho: Pensei que ia fazer um sucesso com meus livros... Pensei que ia ser das primeiras a passar...Mas,  também vou ter de esperar minha vez...

E eis que o milagre aconteceu!

A porta foi aberta por dois anjos-tocheiros- e  lindos. Cada um segurava uma tocha luminosa para clarear o caminho da Virgem Maria que vinha, pessoalmente, receber os dois chegantes mais ilustres.

Tanta majestade, tanta luz chamou a atenção de todos e os cochichos corriam soltos pelas nuvens:

_ Quem serão eles? De que reino vieram?

_ Que tesouro poderoso eles trouxeram para tanta importância?

_ Aposto que é algum magnata ou Miss...

         _ Pois eu aposto que é algum político com delação premiada...

         Então, uma trombeta soou e os nomes dos poderosos foram ouvidos pelas potestades do infinito azul:

         _Manoel de Barros, pode entrar!

         _ Bolañhos, pode entrar!

         Todos abriram alas e puderam ver os tesouros nas mãos de cada um...

         E ficaram sem entender nada:

         Manoel de Barros trazia mil bichinhos e Bolañhos trazia um barril vazio...

         Foi uma festa no céu!

         Anjinhos corriam atrás de formigas e borboletas e beija-flores e caracóis e caramujos e minhocas  e passarinhos cantantes...

 As estrelinhas formavam desenhos  e letras  no infinito azul...

 Cá na Terra, todos puderam ler entre nuvens e raios de luar:

 

“FOI SEM QUERER QUERENDO”

“PREZO INSETOS MAIS QUE AVIÕES

“ PREFIRO MORRER DO QUE PERDER A VIDA.

 “Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas..
Porque eu não sou da informática”

 

       Fez-se um silêncio, só interrompido por cânticos e sons de harpas e flautas.

Bolañhos e Manoel de Barros, constrangidos, passaram à frente de todos e  foram recebidos- com honras- por Nossa Senhora:

_Podem entrar... A Poesia e a Ingenuidade têm preferência na porta do infinito...

Então, São Pedro, o dono das chaves celestes, fechou as pesadas portas e os chegantes continuaram esperando sua vez...

 

Dores do Indaiá, 2 de dezembro de 2014.