quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016


DECORANDO CAMINHOS

Maria

 

Meu pai carregava a minha triste malinha: eu ia ficar aqui para estudar na famosa Escola Normal.

Naquele dia, sua fala era diferente, em tom de professor, em tom de pai zeloso.

Embora eu vivesse entre Estrela e Dores, parece que, naquela tarde, eu pisava aquele caminho pela primeira vez. Alguma coisa me contava que agora eu percorreria aqueles caminhos sozinha, sem ninguém por perto. O olhar seria só o meu, a escolha seria só minha – eu teria que guardar os lugares de que meu pai falava, que meu pai me ditava.

A casa da tia Santa ficava bem longe, pertinho do Morro da Capelinha. Havia muitos caminhos para se chegar até lá.

Eu, menina, avoadinha, coração apertado, ia ficar sozinha na cidade grande. As lágrimas dançavam nos meus olhos e eu piscava miudinho, mi-u-di-nho-o-o-o...

Não podia me esquecer da nossa casa, da igrejinha, de mamãe e da “Ana da mamãe”...

No ônibus do Bizinho, olhei para trás, olhei, olhei, olhei... Meus quatro irmãos pequenos, assustadinhos com a falta da irmã, companheira de venturas e aventuras. Peti, minha bela irmã, espantava o choro varrendo o passeio...

Com essa imagem no coração, vim para ficar.

Meu pai falava:

- Nesta Padaria, você pode comprar merenda.

Eu decorava o nome: “Padaria do Alcides”.

- Nesta loja, você pode comprar o que faltar.

Meu coração decorava: “Casa Seleta”, do Lima...

Passamos pela Matriz, onde entramos para a costumeira visita ao Santíssimo Sacramento.

Minha malinha marrom rezou conosco, quietinha no banco. Eu olhava para ela e não sabia qual de nós estava mais triste...

Correios de um lado, pensão da D. Mariazinha do outro...

Paramos perto da casa/loja do Cornelinho, onde é hoje a Tarumã. A voz de papai mudou de tom. Agora era uma voz preocupada. Percebi a mudança e procurei guardar suas palavras, procurei captar aquele tom preocupado e enérgico.

Papai parou. De verdade, nunca havia reparado em tantas ruas por onde eu poderia passar. Ruas que eu conhecia tanto... Só não conhecia a alma de cada uma...

A voz de meu pai fincava nomes em minha cabeça: - Nessa você pode passar...

Meu coração marcou a rua tão conhecida, a rua do portão grande, gran-an-de do quintal do tio Zé Mariquinha, onde eu pegava fogo com os primos, Helena, Odete, Marcondes, Joaquim, Zé Franco... Tia Clarinda, de vez em quando, jogava uma zanga no ar, que o vento tratava de espalhar depressa. Ah! portão querido!

- Naquela de lá, pode passar...

Meu coração marcou a Rua da D. Belinha, rua em que eu nasci... Ah! Rua querida!

Aí, veio o aviso sério:

- Nesta aqui, olha bem, nesta você não pode passar... nunca... nunca... nunca!

Seguimos por ela e meu coração não via nada de diferente: casas, mulheres, crianças, galinhas, cachorros, açougues, carroças e... um bar.

- Bar Maravilha!

Meu coração achou o nome lindo!

Repeti encantada:

- Bar Ma-ra-vi-lha!

Naquele tempo, meninas e moças não entravam em bares. Mas aquele nome me encantou.

- Marca bem essa rua, minha filha! Sozinha, você não pode passar por aqui!

- Por que, papai?

Ele não respondeu. Mas, em conversas com os primos e ouvindo conversa “gente de grande”, eu soube que ali moravam as “mulheres de vida alegre”, um mistério que nos escapava.

O ônibus levou meu pai para Estrela. Fiz o caminho de volta sozinha: Farmácia do Jacinto, Casa Seleta, Bar Central, Padaria do Vasco, bancos, Clube Velho, Dr. Zacarias, Matriz, o coreto poético com seu chapeuzinho de lata...

Os postes, no meio da rua, tudo fica longe... De repente, a Casa do Cornelinho.

- E agora?

(Essa pode, essa não pode, nunca, nunca, nunca...)

Meu coração batia aflito. O suor pingava.

Minha cabeça girava e minhas pernas eram de gelatina. Desorientada não conseguia achar a rua certa. O sol já cochilava e procurava seu ninho no canto do céu.

Limpei os olhos, respirei fundo e escolhi uma das ruas.

- Benzadeus! Bar Ma-ra-vi-lha!

O choro correu livre...

Assustada, bati palmas em uma porta. Uma mulher, de cara boa, batom vermelho e vestido ramado me atendeu. Pedi água. A voz da mulher era alegre e eu fiquei mais calma...

- A senhora sabe onde mora a tia Santa?

- A Santa bordadeira?

- É essa mesma! Graças a Deus!

Subi a rua, subi o morro de mãos dadas com a boa mulher. Sua mão me protegia e eu até pensava que ela era o meu Anjo da Guarda.

Minha tia Santa ficou espantada quando me viu chegar de mãos dadas com uma mulher bonita, de batom e de vestido ramado.

-Uma mulher de vida alegre, cochichou tia Santa. Psiu!

 Meus primos Moacir e Dalva não entendiam nada! Nem eu!

Ao despedir-me da boa mulher, completei o espanto dos belos olhos azuis de minha tia Santa. Emocionada, querendo agradar, caprichei no agradecimento:

-Deus lhe pague, Dona MULHER DA VIDA ALEGRE!

                                                       QUARTO DE CRIANÇA

                                                           Maria

                            O Anjo da Guarda

                            Colado à caminha

                            Vela o sono

                            Da menininha.

 

                            E Nossa Senhora

                            Bem junto ao bercinho

                            Nina, de manso,

                            O menininho.

 

                            Quando a noite desce

                            O Anjinho da Guarda

                            E Nossa Senhora

                            Acordam

                            Os bichinhos

                            Que enfeitam

                            As roupas

                            E as paredes

                            Daquele

                            Quartinho.

 

                            E os bichinhos...

                            Escutam

                            Histórias

                            Da boca

                            Mais pura

                            De Nossa

                            Senhora.

 

                            Bem tarde

                            Da noite...

                            Acabou-se,

                            A história...

                            Dorme

                            A menininha

                            E dorme

                            A Senhora.

 

                            Dorme o

                            Menininho

                            E também

                            O Anjinho

                            Cansado

                            Da guarda

                            Daquele

                            Quartinho.

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LEILÃO

Maria

 

Chuva mansa

Que dança

Na grama

Do meu jardim,

 

Você quer trocar

O lugar comigo?

 

Eu vou sair

Com seu rosto

Molhado,

Nos braços

Do vento

Cantar nos telhados

Molhar os prados

E ser feliz.

 

Você vem.

E quieta

E muda

Vendo tudo,

Sem nada ver

Olhará a rua

Desta janela nua

Em que estou

A cismar.

 

_Por que será que a chuva se foi?

 

Raio de sol

Filhote de luz

Que brinca

Na grama

Do meu jardim,

 

Você quer trocar

O lugar comigo?

 

Eu vou sair,

Com seu rosto

De fogo

Vou

Correr mundos

Beijar as nuvens

E ser feliz.

 

Você vem.

E quieto

E mudo

Brilhando

Sem  aquecer

Olhará a rua

Desta janela nua

Em que estou

A cismar.

 

_Por que será que o sol se escondeu?

 

E eu continuo

Na minha janela

Fazendo leilão

Do meu lugar:

 

-Quem quer trocar

_Quem quer trocar

De lugar?

 

O vento passa:

_Ninguém! Ninguém!!

 

 

A chuva repete:

_Quem? Quem?

 

O sol zombando

Pergunta brilhando

_Alguém? Alguém?

 

Meu coração

Reconhece tristonho:

-Ninguém! Ninguém!

 

                                                   (1974)

 
                           

                                       

                                    O ANJO DO INDAIÁ

                                                     Maria
 
 
 
 
O Sabará                                                          O Sabará criou asas,

tinha brinco                                             virou anjo, 

na orelha                                                 virou fada,

minissaia                                                 bateu asas e voou.

pregueada

chapeuzinho                                           Voou para a casa do céu                      

de cetim                                                  Voou para a casa da estrela

e a alma                                                  Voou para a casa do sol

encantada...                                                                     

                                                               

Tinha farda                                              O Sabará virou anjo

de soldado                                               O Sabará virou fada

tá-tá-rá                                                     Sarou dores

tá-tá                                                          virou lenda 

tá-tácá                                                      cá das terras

tinha boca de arco-íris,                             do Indaiá...

fantasia de boneca,

desfilava na Avenida                                   (Para o Sabará, encanto de

com alegria de poeta.                                 nossas ruas.
 

 

Pegou o sol da manhã                        

e fez uma roupa de ouro,

tecida de luz amarela

e com pinguinhos brilhantes

fez uma coroa de estrelas.

CASA ARRUMADA

                        Maria

Hoje, pela primeira vez, depois das férias de julho, conseguimos varrer debaixo de todas as camas. Ainda achamos um canivete e um pezinho de meia dos netos.

Quantas vezes eu pensava, com o coração de dona de casa na ponta da língua:

- Nem vou acreditar, no dia em que vir essa casa arrumada de novo!

Sabe quando você perde o controle, perde o fio da meada? Eu estava assim.

Para passar roupa, enchia a cama  com as malas e sacolas que estavam em cima da mesa de passar. Depois, pra deitar, enchia, de novo, a mesa com as sacolas; colchões enrolados e espremidos nos menores cantinhos. Por cima deles, um monte de travesseiros e cobertores se equilibrava o dia todo. Pareciam mulheres gordas com enormes trouxas na cabeça.

Os discos se misturaram todos – hoje achei uma capa recheada com cinco e quatro vazias, vazias. Também, achei (e fiz bolinha) do último par de meias que estava perdido.

A maleta de ferramentas do BEM foi, milagrosamente, salva dos netos que enchem as paredes de sinal de martelo e que somem todos os pregos. Aliás, em cima do guarda-roupa é o lugar ideal, o esconderijo para os netos que ainda estão pequenos. De lá, descemos hoje, majestosamente, as tesouras, o bauzinho de costura, a casinha de espetar as agulhas e alfinetes e as facas perigosas para crianças.

Também tive um alívio ao encontrar a jaqueta cinza do BEM, que curtiu um bom frio junto aos netos. Não fosse a carestia, juro, comprava outra...

- Onde ela estava? E ele a olhava como se fosse nova.

- Por baixo do seu terno do casamento.

Também, para surpresa minha, meu filho caçula conseguiu achar suas malas, enchê-las de mil tênis, achar os cadarços de todos; achei-o mágico em conseguir separar tudo e puxar o zíper das sacolas, com cara meio triste de estudante em fim de férias. De repente, vira homem e ajeita tudo sozinho.

Por Deus, não sei como todo mundo comia, como todo mundo saía limpinho e cheiroso, onde achavam suas toalhas e seus sabonetes. Pra mim, nessas férias, com casamento e tudo, o maior triunfo é o retrato da família reunida, todos com roupas impecáveis, de gravatas e coisa e tal. Só a dona da casa ficou sem a bolsa de seus sonhos no retrato, porque “a bolsa se esqueceu de avisar que também queria ir à igreja”. Bem que falo: - “Num dia assim, bolsa, abotoaduras, ferro ligado... Uma cabeça só não aguenta mesmo, apesar das listinhas postas no telefone... “Buscar mandiocas”, “engraxar sapato preto”...

Pois é. Mas a casa está arrumada. Os chuveiros com seus filhotinhos-chuveirinhos na ponta da mangueira, o telefone tocando alto de novo, as paredes limpas, brilhando. Os vasos de flores voltaram pra seus lugares e os talheres das visitas já dormem de novo em suas caixinhas.

Ah, mas que casa grande, reclama o meu outro coração – o de mãe, o de vó...

Ah, mas que casa mais sem pó!

Que forro mais metido, de nariz engomado em cima da mesa que brilha de limpa.

Que tacos mais pretensiosos, refletindo a imagem de quem neles se mira.

Que silêncio mais antipático, esse que enche a sala, os quartos e o quintal.

Silêncio é bom quando, nos intervalos da barulheira, um dos netinhos dorme ou a turma miúda sai para dar uma volta! Silêncio é bom quando se sabe que é um silêncio medido que, a qualquer hora, se interrompe com a alegria de alguém.

Mil vezes a casa de pernas pro ar; mil vezes a toalha de plástico, toda manchada das mãozinhas levadas.

Mil vezes tesouras e agulhas perdidas, chuveiros com a mangueira amarrada, até o chuveirinho aparecer...

Mil vezes ir ao casamento sem a bolsa “translumbrante!!!”

Mil vezes mil!

Quero essa casa desarrumada, bagunçada de novo. Só assim o meu coração entra nos eixos, dança alegrinho e moderno, cá dentro.

Porque já descobri: quando a casa está arrumada, é um descompasso no peito! Quando as vidraças estão brilhando, as lentes de meu olhar ficam embaçadas e nada consegue fazer meu coração dançar no ritmo. Ele fica jururu, dançando umas valsas tão antigas, tão lentas, que tenho até receio de que ele vá parar numa dessas voltas antigas...

--Será por quê?

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Dores do Indaiá, 25 de agosto de 2000

CACOS DE ESTRELAS

 

Maria

 

         Querida amiga Socorro,

 

         Pego do cabo da pena para saber as notícias de Estrela e, ao mesmo tempo, mandar as minhas.

         Há muito tempo não vou aí e penso que ninguém nem mais divulga o meu semblante de quando eu era menina pequena.

          O   sol anda fazendo arte  por demais, tão estatalado que faz a vista da gente embaraiá... Outra hora, o céu ficava com aquele azul-longe que me dava uma saudade roxa da voz de minha mã – ela é que falava azul-longe... Eu já estava ficando  embizorrada, em tempo de dar uma duda...Mas toda vespra de Natal me bate essa saudade doida, me deixa forra do prumo...

          Então me deu na bistunta, arrebitei a tanga  e  resolvi escrever essas maltraçadas linhas para dar sossego ao meu coração!

 

         Socorro, socorro! Acode sua amiga vasqueira e me faz um grande obséqui: reúne a meninada do nosso tempo estrelado e vamos dar uma parada no tempo, mostrar pro povo de hoje como é que se faz um Natal de verdade.

        Chama a Peti, a Marília, a Zizi, a Ilza, a Zenaide, a Vitória a Bete e a Elfra, a réqua das maiorzinhas.

         Depois chama a miudeza: Perpétua, Maria da Luz, e os meninos-homens, que eles são mitra pra descobrir as belezuras no mato, aquelas que quando estão no  presépio, parece que estão no céu, sabe?

         Avisa eles que, esse tempo aí em Estrela é muito traiçoeiro: dá cada canca d'água que os caminhos viram uma barrela mole, perigosa por demais. Só depois da água escorrer pros corgos é que eles podem sair de novo, bispar tudo, achar aquele horror de ninhos, aquela sortida de barbas-de-pau... Lembra do Jair da Sá Alvina? Uma vez ele foi atrás de um ninho-de-guacho, do outro lado do Leitão, deu um chuveiro de redemunho, ele azuretou, subiu num pé- de- pau e todo mundo pensou que ele tinha sovertido. Mas ele apareceu com o ninho maior que nós já vimos – ele ficou despendurado na gruta, bem perto do Menino Jesus – foi um encantamento!

         Mas... Socorro, estou desviando do assunto principa: reunir a meninada, juntar os ingredientes todos, porque, quando eu estrelar aí, é só abri a casa, varrer o terreiro com vassourinha- de- alecrim pra perfumar o ar e...

         Primeiro, fala pra D. Maria do Onofre pra ir ensaindo o Noite Feliz, o Adeste Fideles, o Nasceu-nos um Menino, o É a Noite, é a Neve e os outros cânticos de costume: ela sabe. Ah, pra ela deixar a Irani e a Aurora fazerem a segunda voz, que fica muito mais entoado!

         Reparte os meninos (e as meninas- mulher): uns vão plantar arroz nas latinhas que eu deixei lá na casinha da cisterna, num saco de cimento. O saco vai ser a gruta – pode arranjar mais uns dois, lá na venda do Zé Merenda eles dão.

         Outros vão procurar lodo- que hoje eles chamam de musgo – lá na Biquinha tem uns gordos, fofos e grandes: é só tirar com um canivete bem afiado, deixando bastante terra por baixo, pra durar. O canivete? Todo menino tem um no bolso, não se lembra?

         As meninas podem ir ajuntado caquinhos de espelho, lá no quintal tem muitos – é só esgravatar a terra onde era o chiqueiro...

         Agora, prestenção pra fábrica da gruta: arranja caquinhos de vidro e de garrafas – lá na Famácia do Jacy tinha um tanto no canto do muro, desde o tempo do Izir, do Itajiba e do Sô Revalino eles tinham essa mania de juntar os cacos de estrela como a gente falava-nesse canto... Lava tudo bem lavado,  pra mostrar o brilho – eles vão virar estrelinhas no céu da gruta! Pra eles virarem estrelas, tem de socar tudo no pilão que a Madrinha Maria deixou encostado na casinha do Fundo do Negócio, debaixo de um pé de Sempre-Lustrosa.

         Procura pó de café – só um tiquinho – lá nas latas da prateleira da mamãe e um pouco de cinza do fogão de lenha... Aproveita e pega um punhadinho de carvões graúdos. Agora, pensa: o céu lá de cima é tão azulzinho e a D. Maria Cardosa ensinou fazer o céu da gruta com esse tanto de coisa escura, mas, mesmo assim, fica a maior beleza. Será que ela já tinha visto o céu de perto? Eu, hem? Sempre achei a Sá Cardosa com cara de céu!

         Numa gavetinha da mesa- de- passar- roupa, a Ana deixou uma porção de malacacheta – uma beleza! Pode pegar, tem só um restinho... Elas também viram estrelas... Será onde o meu pai arranjava malacacheta? Ah, a Tia Helena deu um pouco de purpurina e está na gavetinha também. Tia Helena é aquela chique, uma que tinha uma casa com campainha e sabão na correntinha, lembre que eu contava e todo mundo falava que eu estava fazendo fita? Estava mesmo!!! Pois é, purpurina era coisa de gente chique, ninguém conhecia isso aí em Estrela – fizemos a maior fita nas amigas...As mais regateiras ficaram murchinhas... Aí, meu coração desacostumado fazer ruindade, me deu um psiu: fiquei com dó da Cecy - ela era das mais sem-seca-  e dei um pouquinho pra ela. Ela foi andando devagarinho, com as mãos cheias de pó-de-estrela – um céu na palma das mãos! Até hoje, Socorro, sinto um doce de leite cor-de-rosa batendo no meu peito -meu coração tinha virado doce de leite quando vi a Cecy carregando estrelinhas nas mãos...

         Agora, é só fazer o grude com polvilho ou farinha de mandicoa – fica até melhor, que dá uns carocinhos – o céu fica mais de verdade.Pega saco de moá também – o Zé Merenda até dá pra gente, que tem muita no armazém ele. Os sacos vão servir de matos, de pastos – então pode ser tingido de tinta verde -
Guarani – sua mãe sabe como é; Isso é serviço de gente grande – tem de ferver no fogo – a Sá Cesária tingia pra fora -  procura a Sá Cesária:... Ela ainda mora naquela casinha da moita de bambu? Que coisa, heim,. Socorro, ela tinha os dois dedinhos mindinhos quebrados, dizima que ela era escrava e que eles quebram por ruindade. Credo! Mas,  pede pra ela tingir os pastos pra nós...

         Agora, depois e tudo socado – achou a mão-de-pilão? - passa o grude nos sacos de cimento e joga o pó misturado por cima. Poe uns cacos maiorzinhos aqui e ali, porque há umas estrelas bem estataladas, que nem sol da noite. Põe também uns pedacinhhos de carvão de quando em quando – acho que a gruta do Menino Jesus tinha uns sujinhos de carvão, vai ver que tinha – será por quê? Deixa secar.

         A estrela-guia eu guardei comigo – vou levar: é a mesma que alumiava a gruta de meu tempo-menino. Acredita, ela brilha do mesmo jeito, até hoje!

         Aí... eu chego!

         Meus irmãos pequenos estão com estrelas nos olhos! Cada amigo tem uma lua nos cabelos! Há pó-de-céu no chão de tábuas largas e mamãe sorri purpurina dourada. Papai tem dois caquinhos de vidro azul nos olhos... Peti tem uma estrela-guia no peito e Carlos traz laguinhos de espelhos nas mãos alegres. Madrinha Maria e Ana da mamãe trazem pastores e reis e carneirinhos e ninhos e vaquinhas e burrinhos. Toda a casa brilha – ela é um céu!

         Aos poucos, a gruta toma forma na mesa forrada com a toalha de linho do casamento de mamãe. Os pastos de saco-de-moá  abrigam os cacos de espelho e suas margens de lodo são macias e frescas. Vaquinhas bebem água de espelho e burrinhos pastam grama de tinta Guarani. O ninho-de-guacho está dançando junto com ninhos pequenos, cheios de ovos miúdos... A Sagrada Família já está lá no fundo escuro da gruta. 

Menos o Jesusinho, que só vai chegar à meia-noite. Menos os três Reis , que ainda estão vindo, de mansinho, de mansinho, lá longe!

         Ah, Socorro! Você não está encontrando os ingredientes para essa receita antiga de Natal?

         Mas, eu sei que ela está aí; pergunte ao sino da Igrejinha, ele deve saber onde meus guardados estão...Afinal, minha casa ficava pertinho dele e,  lá da torre,  vigiava tudo! Pergunte ao vento que dançava pelas ruas e ruelas de minha Estrela ele deve saber!

Pergunte às pedras que eu pisava, pergunte ao orvalho que serenava nas madrugadas, pergunte ao sol sertanejo e à lua branca... Pergunte ao céu azulzinho, às árvores de pernas tortas do Cerrado que cerca nossa terra...  Pergunte às estrelas que iluminaram minha vida... Pergunte à velha gameleira – ela sabia de todos os segredos da terrinha...

         E. se de todo não achar nada, Socorro. Procure a Casa das Lembranças, a Casa das Saudades. Lá, eu sei que encontrará tudo.

         _Por quê?

         _ De verdade, não sei direito,mas meu coração anda preferindo morar lá...

                                                   …....................

         Socorro, termino esta carta com os olhos cheios d'água. Peço que não repare os meus erros e dê lembranças a todos. De sua sempre amiga,  do coração, MARIA

......................Dores do Indaiá, 12 de maio de  2006