terça-feira, 22 de julho de 2014


LUGAR PEQUENO

 Maria

Voltinha de carro com a neta.

Uma paradinha na esquina.

A amiga pôs a cabeça dentro do carro e, sem mais aquela, num segundo, fez o relatório do dia:

- Menina, cê soube do fuá dos passarinhos?

- Dos passarinhos? Não, o que houve?

A amiga disparou, entusiasmada por me dar a notícia em primeira mão...

- Nossa, então ocê não sabe ainda? A polícia de Belo Horizonte apareceu de repente e levou a passarinhada todinha!!!

- Todos?

- É. Os primeiros foram os do Walmique.

A amiga acentuou bem o nome do dono dos passarinhos, conhecido por ser sistemático e não admitir brincadeiras... Muito menos com seus passarinhos!

Eu respondi, compungida:

- Coitado, ele vai adoecer, juro!

A vida dele – e da Raquel – é só rezar e mexer com os mil passarinhos, com a gaiolada... Ele vai adoecer, naquela nervosia, coitado! (O Bem concordou com um movimento de cabeça)

- Mil, vovó? Ele tem esse tanto de passarinho? Então, ele vai tomar injeção...

- Pois é... Levaram as rolinhas-caldo-de-feijão do meu menino... Ele nem almoçou!

- Tadinho!

- Tadinho de quem, vó?

- Uai, do filho dela!

- Ah, pensei que era do homem dos mil passarinhos...

A mulher se entusiasmou com as novidades:

- Nossa, então cê não tá é sabendo de nada! Vou te contar tudinho! Meu filho chegou da escola e falou: “Mãe, esconde o cravo que os homens tão pegando tudo! Levaram até as Maritacas do Tito Sapateiro!”

- Nossa! Aquelas que ficam na porta da sapataria, mexendo com a gente?

- É... Ele não conforma...

Aí, minha netinha quis saber o resto da história do cravo da mulher:

- E seu cravo, pegaram ele?

- Não, bem... Tranquei ele no quarto escuro e ele aprontou a maior berreira...

Minha neta, a Marina, riu do cravo berrando no escuro e derramou pipoca no meu colo todo.

O Bem falou de lá:

- Cuidado, Bubu – era o apelidinho dela – depois o carro fica cheio de mosquito...

Ela nem deu importância e o Bem até desligou o carro: o caso prometia ir longe...

- E os soldados levaram ele? (Era a Bubu querendo saber o resto da história do cravo)

- Nada, nem apareceram! (E ria aliviada...)

- Pior foi com a comadre Tina... Ela pôs os periquitos lá na coberta e...

- Levaram eles?

- Não, o gato comeu todos!

- E as maritacas do Tito Sapateiro? Nó! Todo mundo vai sentir falta delas...

- Pois é, aquelas maritacas eram chiques, sabiam falar de tudo, eram ensinadas, vai ser o maior pesar...

- Vó, foi aquela que mandou a gente tomar banho?

- Fala baixo, Marina! (Era o vô, sempre cauteloso e elegante...)

- Foi aquela mesmo...

- Bem feito!

Nós rimos muito e cada um se lembrou de uma passagem das maritacas, falando desaforos e fazendo graça para quem passava...

Elas não respeitavam ninguém e a cidade toda tinha o maior carinho por elas...

- Nossa, menina! Diz que hoje, lá na Sapataria do Tito, a maior tristeza: puseram uma faixa preta, grando-o-o-na-a-a-a no poleiro das maritacas...

- Credo!

- Pra quê, vovó?

- Em sinal de luto, suspirou a amiga! (O Bem olhou enviesado no espelhinho, sondando minha reação...)

Enquanto isso, a neta aprontou mais confusão com as pipocas e nós fomos embora, para alívio do Bem.

Daí a uma semana, meu filho- estudante em Belo Horizonte- chegou contando:

- Mamãe, o Tito conseguiu as maritacas de volta!

- Como?

- Uai, ele provou que elas vivem em liberdade e levou dois vereadores daqui, lá na Deputada, em Belo Horizonte...

 E arrematou rindo:

- O povo falou que elas não davam sossego lá e gritavam o tempo todo:

- Tito, vem me buscar!

- Tito, socorro!

- Tito, help! As diabinhas até falam em inglês.

Meu filho –muito brincalhão-saboreava nossa surpresa e eu, até hoje, desconfio de que as maritacas falavam em inglês...

Agora, elas estão lá na maior crença.

Mexem com todo mundo, na maior falta de cerimônia e a cidade toda aplaude!

segunda-feira, 16 de junho de 2014


LAVADEIRAS ESTRELADAS

Maria.

 

         Morro de saudades das lavadeiras de roupa lá de Estrela do Indaiá..

         Era um dia diferente, alegre, cheio de novidades...

 

         Elas chegavam carregando capangas cheias de ramos, colhidos aqui e ali e sempre traziam um raminho de arruda atrás da orelha – junto com o pito de palha...

         Sabiam benzer de quebranto, mau- olhado, espinhela caída, pés- rachados, vento virado, piolhos e, acima de tudo, sabiam mil mandingas para as moças arranjarem namorados...

          Seus nomes tinham outra música, tinham um quê de magia, como aqueles ramos, aquelas rezas e as querelas que traziam... SALVINA, MERENCIANA, BASTIANA, BÁ, DONETA ,SAZIRA, LETA DO TONHO, SACEZÁRIA, NHANA, CHICA, CORINA, BECHOLA, MERENDOLINA...pareciam nomes de borboletas, de siriricas, se elas tivessem nomes...

         Algumas doenças eram cochichadas,” menina atrevida, isso não é assunto procê” escutá...

         Mesmo assim, eu descobria os assuntos impróprios : doenças de resguardo de parto,males de mulher de moda, (tradução: grávidas, palavra nunca sabida naqueles tempos) falta de apetite de moças solteiras e que estavam ficando pra titia...”Repara nos suspiros dela – é falta de marido...”

         Traziam novidades fresquinhas de namoros proibidos: “Eles fugiram de madrugada, ela deixou a janela do quarto aberta, ele foi de jipe e roubou ela, lá da fazenda...

         A lorota continuava:

         “Bem que a comadre Sinésia estranhou o tanto de anágua, de combinação e corpinho que a moça pôs pra lavar... E teve inté de engomar tudo...(Um suspiro fundo e cansado marcava uma pausa)

         Aí, arranjaram testemunhas, foram pra Luz, o Bispo casou os dois e pronto...

         O pai dela teve que engulir...A coitada da mãe  ficou de cama três dias – até fui lá benzê ela de espinhela caída...

         E hoje eles vivem a pão-de-ló, numa casa boa e ela já tá de moda...

         E a lavadeira desenhava  UM NOME DO PADRE  no  peito magro, esconjurando tanta falta de juízo...

         O cochicho continuava dia afora, e a Madrinha Maria trançava da cozinha para a casinha de lavar roupa. O tacho grande soltava uma fumaça cheirando a sabão de pelota, patchuli e folha de mamão pra clarear a roupa que fervia...A meninada trançava também e bispava tudo.

         Eu, aproveitava –zanzava o dia todo, de casa em casa, ia de vizinha em vizinha: gostava de ver as roupas dos vizinhos corando na grama, em matinhos da beira da casa. Gostava de imaginar as anáguas das moças da casa dançando... Gostava de imaginar os vestidinhos das meninas da casa brincando de roda...Gostava de ouvir os casos de amores proibidos, de doenças e benzeduras...

         A hora do almoço era outra festa: sempre havia a companhia de pessoas que trabalhavam na casa e, não raro, da própria patroa, geralmente, comadre da lavadeira...

         Servir o prato, lá no fogão a lenha, era um ritual respeitoso e tradicional:  hora de comida era um hora sagrada!

         Primeiro, o feijão bebido, coberto de farinha... A um canto, um montão de arroz, no outro, macarrão de buraquinho, com molho de tomatinhos e belos pedaços de carne de porco, torresmo, mandioca... O cheiro era tão gostoso, elas comiam com uma boca tão boa!... Depois, limpavam as mãos na barra do vestido, no pano da cabeça e... cantavam o ofício de Nossa Senhora, enquanto faziam o quilo... Outra hora benta, da qual nunca vou-me esquecer

         Cresci neste meio simples e poético: cresci ouvindo histórias que eu só via  nos livros de fábulas, de príncipes e princesas. De verdade, eu vivia em um reino de fantasia...

         O cochicho continuava dia afora, e a Madrinha Maria trançava da cozinha para a casinha- de- lavar- roupa. O tacho grande soltava uma fumaça cheirando a sabão-preto,  de pelota, patchuli e folha de mamão pra clarear a roupa que fervia...A meninada trançava também e bispava tudo.

         Cresci, com cara-de-fada, com cabecinha no ar e coração doidinho...

         Hoje sou uma vovó-menina, uma velha-mocinha-velha: tudo por culpa de uma certa Estrela...

         Se não morei numa estrela de verdade, daquelas lá do céu, juro que vivi num Reino Encantado....

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Dores do Indaiá, 23 de maio de 2014.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

             

               

 

terça-feira, 10 de junho de 2014


QUARTO DE COSTURA

Maria
Para o Dia dos Namorados,
(Lembrando o começo de namoro com o BEM, no ano de 1953)

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                Eu tive e perdi um certo quarto de costura.

        Eu tive e perdi uma janela, um alpendre, um calçadão na Avenida.

        Ele era o ponto de encontro das damas chiques da cidade. Minha tia Helena costurava em meio a conversas sobre cinema, sobre livros e, sobretudo, falava-se de moda.

        Considero puro milagre minha tia não errar as costuras misturadas a conversas tão animadas...

        Quando vim estudar aqui, menina ainda, não era admitida nas rodas de gente grande. Ficava estudando na sala ao lado, escutando as conversas, descobrindo as coisas.

        Bendita mesa de jantar, onde eu estudava, bem em frente à porta da rua!

        Ouvi palmas. (Não existia campainha nas portas...)

         Fui descalça mesmo atender.

        _ Diga pra sua tia que a Laura não pode provar o vestido , na hora marcada – vem às quatro horas.

        Nunca mais perdi o moço de vista. Achei-o lindo, de covinhas no rosto, uma barba azulada na pele clara... Só pensei que “era uma pena lhe faltar um dente, mesmo na frente!”

        Guardei o segredo do moço e, da janela do quarto de costura, enquanto as visitas não chegavam, eu o seguia , com os olhos, na ida e vinda do Banco... Limpava a poeira da janela pra minha tia não desconfiar...

        Ficava olhando o seu sorriso, o seu olhar comprido lá da porta do Banco e ele era o último a entrar, depois de me fazer um leve cumprimento de cabeça...

        Nunca um quarto de costura foi tão varrido, tão limpo, tão esfregado! Com a (im)paciência de quem espera um grande momento, eu espetava, na mesa macia, cada um dos mil alfinetinhos que achava espalhados pelo chão, com um cuidado especial, fazendo o tempo coincidir com a passagem do moço bonito: quando ele sumia na rua, eu espetava o último alfinete. Toda a tarde era a mesma coisa...

        Quantas vezes escondi meu prato dentro do forno só para ver o moço “sem dente na frente” passa... Quantos tropeções, quanto papel jogado no passeio, só para ter a desculpa de ganhar seu sorriso...

        Minha tia Helena fazia maravilhas de roupas para as noivas. Eu sonhava, sonhava, olhando a prova dos vestidos longos, das camisolas compridas abertas em rendas... Eu sonhava com o moço do Banco e, no lugar das noivas, eu me enxergava dentro de mil véus,

De mil laços, com mil saias...

        Aos poucos, fui sendo admitida nas rodas das damas e já aprendia a fazer os arremates nas costuras..... A máquina rodava e eu sonhava, em meio às rendas, bordados e fiapos de conversas... Enquanto isso, o moço passava e continuava a me dar um sorriso...

        ‘Cada freguesa, cada amiga ensinava uma coisa, emprestava um livro, ensinava uma receita para resfriados, receitas de bolos... E eu ia crescendo... E o namoro-de-longe também crescia...

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        Hoje passei lá na Avenida.

        O quarto de costura está lá. Falta uma máquina, uma tia.

        O moço do Banco? Lacei-o para mim...

                 A falha de dentes? Não era uma falha, eram os dentes separados, uma característica que me encantava sempre...

        Em nossas conversas, rimos muito... Eu falo:

_      Não fosse a falha de seu dente... sei não...

        E ele confessa rindo que, ao ver meus pés tão branquinhos, ficou preso para sempre....

        Pois é.

Eu tive uma rua, um quarto de costura, uma jnela que perdi...

        Mas lacei um BEM. Pelos pés...

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Dores do Indaiá, 18 de abril de 1999.

         

terça-feira, 3 de junho de 2014


LOÇÃO / NOÇÃO

 

A moça chegou.

Sua beleza – quase primitiva – inundou a sala quente e barulhenta.

Por aqui – meio rural – ainda podemos encontrar aquela beleza que não conhece shoppings, salão de beleza, dietas e maquiagens sofisticadas. A linguagem seguia o mesmo modelo. Mas tudo tinha uma graça singela, uma presença pura, uma brejeirice do sertão.

Quando ela entrou, a roça entrou junto. Cantos de pássaros, pastos verdes, flores do campo, cheiro de terra, frescor de água.

Meu coração tem um pé na roça. Ele se enternece com a visita da poesia das fazendas de minha terra.

A moça falou de chuvas e sóis, de poeira e secas, de flores e fontes, de olhos d’água e teares.

Tinha aquela despreocupação própria dos simples: a vida lhe era infinitamente generosa – tinha tudo para ser feliz!

Um retiro, umas vaquinhas, galinhas, ovos, um chiqueiro “limpinho, dona”, uma hortinha e canteiros de flores na porta da casa.

- Que cabelo mais bonito!

- Ah! Eu lavo ele é com babosa...

-Que perfume mais suave de sua roupa!   

- É qui eu põe patchuli dentro da caixa...

A “sala de serviços burocráticos” deu uma parada e a moça encheu os arquivos e gavetas e mesas e livros e computadores e impressoras de uma fala mansa e antiga. Sem pressa, sem correria, com todo o tempo dentro de suas mãos...

Então, chega o filho da moça, candidato a um lugar na Kômbida, para estudar em outra escola rural. Outro pedaço das Gerais, outro pedaço do Brasil de pés no chão, aquele Brasil que insiste em suas origens. O Brasil bravio, sertanejo, roceiro, que pisa na terra vermelha, abrindo trilhas em meio ao cerrado-de-pernas-tortas.

O menino achegou-se ao colo farto da mãe, ao colo mineiro, ao colo do sertão do Brasil.

- Mãe, eu quero vim é na Kômbida do homi de boné verde...

- Ah! Mas ele invém é cedim... E sua iscola é di tardi...

- Ah! Mais eu quiria era o Kombideiro de boné verde...

E a moça, iluminando a sala com seu jeito singelo, explicou:

- Tadim... Ele não tem LOÇÃO de nada...

Do alpendre – trabalho em um prédio antigo, com alpendre, uma joia antiga – segui os dois com o olhar...

O marido esperava a mulher e o filho numa charrete romântica e poética. Empoeirada e rústica como nossas roças antigas.

Lá se foram eles!

- Ah! vontade de não ter LOÇÃO de nada...

- Ah! vontade de ter uma roça perfumada, uma escolinha na curva da trilha, uma touceira de babosa para lavar meus cabelos...

Ah! vontade de não ter LOÇÃO deste mundo moderno e doido, onde o tempo leva tudo para lugar nenhum.

- Ah! vontade de não ter LOÇÃO de nada e carregar o tempo dentro de uma charrete cheirando a patchuli...
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Dores do Indaiá, 14 de janeiro de 2005

LEITE DA ROÇA

 

Leite em caixinha, leite ensacado nunca me pegou! Gosto de leite da roça, gosto do barulhinho da charrete, gosto do cheiro de roça, do cavalo. Gosto de ver a latona antiga, o litro de alça em que o leiteiro mede o leite e põe mais um pouquinho “pra descontar a espuma”...

Às vezes, os netos sobem na charrete e dão uma volta grande com o leiteiro, numa alegria abençoada. E voltam contando o nome das vacas:

Mimosa, Fumaça, Sombrinha...

Fico terna, fico fada, lembrando-me das fazendas de minha infância... Com o nome delas, eu faria um poema.

“Melindro, Boqueirão, Vitória, Porteira Pesada, Campo Alegre, Barras, Olaria, Mata de Eufrásia, Monjolo, Pé da Serra, Jabuticabas, Marmeleiro, Prendas, Rio Manso, Cor’go das Almas, Cor’go de Nossa Senhora, Tapuias, Pasto Verde... Estrela. Paracambi..”

O gosto de leite do curral curou meu coração, fincou raízes e nele fez morada.

*                  *                   *

Com o tempo, “aprimorei” a entrega do leite: deixo uma vasilha na mesinha do alpendre. O leiteiro – um amigo antigo – deixa o leite e, depois, a gente pega lá.

Ali mesmo, através de bilhetes, fazemos o acerto: ele deixa a conta, num papelzinho, debaixo da vasilha. No outro dia, deixo o dinheiro. Se há troco, ele deixa lá e nunca deu errado... É a vidinha boa do interior.

- Nunca deu errado?

- Ah! Outro dia, a Vani chegou afobada e, sem notar, trocou a vasilha. Em vez da leiteira, colocou uma vasilha mais rasa, de boca larga e... sem tampa...

Daí a pouco, toca a campainha.

- D. Branca, olha aqui!

- Jesus! Santo Deus!

O gatinho da casa, que o Artur, meu netinho, batizou de Lucas (será por quê?), estava no bem-bom, tomando o leite da casa...

Nesse dia, tive que comprar leite de caixinha...

A Vani se desculpou:

- Era muito mais mió frevê o leite assim memo, pruquê, agora, com soda e água oxigenada que êzi põe, é muito mais pió...

 

 

 Em maio de 2002

sábado, 31 de maio de 2014



 

Nó cego

 

Com uma “plateia seleta e rara”, composta do BEM e de alguns netos, fui intimada a contar mais causos das Gerais.  Afinal, até os psicólogos explicam os tais atalhos, os nós cegos que acontecem quando a gente fala uma coisa sem querer. Quem sabe a alma não quer falar, exatamente, através da falta de jeito?

Até o nosso Presidente, tão preparado, de vez em quando, deixa escapar algum atalho inconveniente e... depois se debulha em explicações. Até hoje, nós todos nos lembramos de que fomos, clamorosamente, chamados de CAIPIRAS por ele, perante o mundo todo! E todos nós ouvimos suas explicações bambas de que CAIPIRA é o mesmo que SIMPÁTICO... Será? Ah! E um sisudo presidente francês, visitando nosso país, jamais será esquecido pela célebre conclusão a que chegou e que falou “sem querer-querendo”: “DECIDIDAMENTE, O BRASIL NÃO É UM PAÍS SÉRIO...” E, se Suas Excelências são traídos pela voz da alma, do subconsciente, imagina o povão e o povinho...

Uma dona de casa esmerou-se, arrumando tudo, para receber a visita de uma colega que, desde que se formaram, se mudara para o exterior. Um chique!

A visita chegou. De relance, ao recebê-la, a dona de casa notou a velha almofada – relíquia de família – bem à vista. Rapidamente, jogou-a atrás da primeira porta que encontrou e foi cumprimentar a visita. Saudades, lágrimas, emoções. Que bondade!

A dona de casa nem percebeu a entrada do luluzinho da colega! E detestava cachorros! De-tes-ta-va!

Tudo certo. Nunca se viu tanta cortesia!

De repente... Horrorizada, a dona de casa vê sair do quarto da frente, nada mais, nada menos do que “um cachorro″ arrastando a velha e “baselenta” almofada.

Rápida, levantou-se, explicando:

- Aqui no interior é assim, cheio de cachorro sem dono... E tocou-o para a rua.

Aflita, jogou a almofada na poltrona, assentou-se em cima e... tudo bem.

Só aí que ela notou, surpresa: a colega abria a porta cheia de dengos.

- Que lindinho, vem cá com “a mamãe”!

No fuá, a almofada (re)apareceu e o lulu, vitorioso, arrastou-a para junto da colega chique... uma madame!

Que atalho! Que nó cego!

 

***

 

Minha irmã, parecidinha comigo, foi à casa da comadre ver a reforma. A comadre insistiu, insistiu e, lá um belo dia, ela então foi. Bateu, chamou, tocou campainha, ouviu vozes, muitas vozes. Fez-se um silêncio. Minha irmã entrou, “era da casa”. A cozinha estava em festa – todos comendo pamonhas, um cheiro! Ninguém se aluiu do lugar... Não queriam visitas àquela hora! A comadre acudiu, foi (des)conversando, foi (des)conversando, e minha irmã tratou de se despedir.

- Vai não, comadre, tá cedo!

E a minha irmã, vexada por atrapalhar a “pamonhada″ da comadre, saiu-se com esta:

- Não, eu preciso ir... tá na hora de esquentar a PAMONHA pros meninos...

Já viu, a pamonha era a janta...

- Ai, ai, ai!

 

***

 

A madrinha do garoto, mimado como ele só, chegou bem à hora em que ele ia dormir.

Um garoto bem grande, com seus quatro ou cinco anos, ainda precisava usar fralda descartável – fazia xixi na cama.

A mãe, doida para dar uma prosa com a comadre, apressou:

- Corre lá, filhinho, corre! Busca a fralda pra mamãe te arrumar!

O menino passou, sem roupa, voando!

A madrinha não acreditou! Fral-da!

- Desse tamanhão, era só o que faltava! (Claro, só pensou, pensou, pensou!)

Como o garoto demorasse, a madrinha gritou lá para o quarto:

- Depressa, anda! Traz logo a sua... o seu... BUNDEIRO!...

Será que o menino ainda fez xixi na cama? Du-vi-d-o-dó!

 

Novos sons

 

Estou em Belo Horizonte.

Estou sozinha. O tricô ficou para trás. Os netos, a casa, Dores do Indaiá e sua paz estão longe.

Eu nem sabia que meu coração sentiria falta dos passarinhos que voam soltos pelos quintais. Ah! E dos periquitinhos que gritam nas gaiolas. Ah! E dos pombinhos “Hamburguês” que cantam e riem como gente grande. Miados de gatos, cocoricós das galinhas, os pintinhos com seus gritinhos alegres, as galinhas-d’angola que enchem o silêncio com o “tô fraco” de sempre. É, eu não sabia que meu coração anota tudo isso, esses sons que já são parte de minha casa.

Agora, fico perscrutando os novos sons, aqueles que não são os meus. Quem sabe, entre eles, acharei algum canto de galo para alegrar meu coração! Ah! Eu queria um canto de quintal nessa tarde solitária, sem céu e sem sol!

O som estridente do portão eletrônico é seco e rápido. Aos poucos, a tarde se veste de noite e os mil prédios vão-se acendendo. Meu coração se anima. Crianças conversam e riem perto do elevador. Tento ouvir mais – saudades das netas. Pena, uma porta qualquer abafou a música daquelas vozes. Silêncio de novo.

Ligam as televisões e os aparelhos de som. Ouço fiapos de falas e de músicas desencontradas. Mais luzes acesas.

Chegam vozes de um prédio bem vizinho.

Uma mulher está nervosa. Sua voz é cheia de nós – quem será que amarrou a voz da mulher? A voz de parece com o tlec-tlec do portão. Rápida e seca.

Duas crianças conversam com a mãe. Nem a alegria delas adoça aquela voz -de portão-eletrônico. Ainda não se desvestiu dos problemas lá de fora. A voz- de mulher/portão solta pancadas secas pelas janelas abertas.        - Tlec! Tlac! Tlec! Tlac”!

Um menininho fala com a voz de quem está incólume à aspereza da cidade grande.

- Mamãe, você vai fazer sopa?

A voz da mãe se abranda um pouco e é quase bonita.

- Vou, vou fazer sopa.

Respiro aliviada. Bendita sopa da boca-da-noite. Os sons da cozinha enfeitam a rua e dançam  pela janela aberta. A mulher já conversa mais alegre e, só de vez em quando, ouço os tlec-tlacs. De sua voz e da faca que pica os legumes.

Um cheiro bom se espalha no ar e a panela de pressão chia alto.

Alguma coisa se parte no chão. A voz- de- portão volta e espalha a ternura do momento para longe. Fico triste. As crianças se calam. Ah! Meu Deus, tão bom se um passarinho cantasse. Quem sabe, se um gato coriscasse por aqui, se um cachorrinho latisse? Nada! Nada acontece e o tlec-tlac martela o ar. Tenho pena dos menininhos...

De repente, a televisão anuncia: A POESIA ESTÁ EM BELO HORIZONTE! É A BIENAL DA POESIA!

Um menininho se anima!

- Mãe, o que é POESIA?

A mulher para de martelar a lingüeta do portão-eletrônico. Se encabula, tenta, tenta. A voz do menininho quer saber: POESIA, POESIA, POESIA...

A panela de pressão chia. O prédio todo se aquece e a ternura entra pelos mil olhos de vidro.

Todos se reúnem em volta da sopa. As crianças estão alegres. A voz da mulher é doce e maternal.

Bendita sopa da boca- da- noite! Bendita Poesia!

O menininho insiste. A mãe, com a voz terna, promete perguntar ao pai, quando ele chegar...

A porta se abre. É o pai que chega.

- Papai, o que é POESIA?

- POESIA... POESIA... ESPERA AÍ...

Tenho vontade de gritar pela janela:

- POESIA é uma sopa quentinha e cheirosa! É uma mãe de voz doce e um pai que chega do serviço!

Meu coração repete:

- POESIA é um ANJO, com cara de criança, com voz de filho pedindo sopa na boca- da noite...

VIGÍLIA

 

 

            Pois então.

         Até pensei em ficar quieta no meu (en)canto...

         Meu coração (des)usado e antiguinho achava muito costa-a-cima vir para o computador, muito mais esperto do que a Maria, passando na minha frente como se fosse dono absoluto do mundo. Mas... pensando bem... Fico com peninha de guardar as coisas bonitas que vejo cá nas Dores sem dores... Fico imaginando: Ah! Se o povo todo visse o céu que estou vendo.... Ah! Se quem está longe ouvisse o que estou ouvindo...Sei não...

 

         Aí resolvi. Pra que guardar tanta poesia, tanta paz só pra mim? Meu coração doidinho (con)corda e me passa um pito: É mesmo, Maria! É até pecado não repartir tanta beleza com os outros... Eles morrem de saudade daqui! Custa você pegar a chavinha mágica e abrir a alma para o mundo?

         Nada, custa nada não... A poesia está solta peles ruas, sobe pelos muros batidos de sol. A poesia está tão perto,é só cutucar...

         Verdade, “divera”. O céu aqui fica tão baixo e é tanto azul que, se quiser, é só estender o braço e pegar um pedacinho de nuvem para enfeitar minha sala. “Divera” o sol é tão baixinho que posso amarrá-lo no meu telhado... Ah, e as estrelas até cochilam comigo... Se quiser,é só pegar uma porção delas e fazer  um colar para mim...

         Música? Nossa... Juro, a brisa que passeia pelas praças e ruas canta tão bonito que meu coração corre com ela pelos telhados adormecidos... Minha alma se prende em seus cabelos e passeia por aí, chega até a minha Estrela, corre pelos campos azuis de nossas fazendas e se embriaga com o cheiro de terra fresca e de água da fonte...

         À noite, o silêncio conversa com a paz e eu descubro cada palavra mágica que embala meu sono e meus sonhos... A lua faz morada bem em cima de minha janela.

         Amanhece.

O Morro da Capelinha pega fogo na luz do sol sertanejo que clareia minha(s) Dores. Cada casa da cidade acorda, lava o rosto nas gotas de orvalho, desce o morro e se escorre  pela Avenida. Mil olhos se debruçam nas janelas e espiam a manhã que nasce.

         Pois então. Faço tão pouco pra matar a saudade que teima em morar no coração de quem está longe, tão lon-on-on-ge daqui... Não me custa ficar de vigília, com o coração bem aberto para surpreender um momento azul, um bailado de flores, uma valsa da brisa e... vigiar o pôr do sol que enfeita  todo fim de tarde da terra azul das Dores....

         Vamos combinar então: você fica aí, tadinho, sufocado pelo cimento dos prédios e do asfalto. Eu, abençoadamente, vou ficar aqui. Vigiando a poesia. Vigiando a paz. Vigiando    a singeleza das horas que se escorrem dos relógios de nossas igrejas. Eu não faço nada mais do que contar tudo o quê vejo. Não faço nada de mais...

         O artista  que fabrica tudo isso deve ser  um anjo, quem sabe, uma fada? A Maria   só põe  os babados....

         Por que, se eu não repartir tanta beleza   com você, meu coração é capaz de estourar de tanta poesia, de se derreter de paz, de ficar de mal comigo.... Além do mais, fiz um trato com a Santa Azul das Dores, aquela que tem uma corroa enluaarada, tecida por estrelas miúdas, sabe qual? Pois então: ela abençoa nosso povo e a Maria vigia  tudo, com olhar encantado e coração de poeta.  Assim, de mãos dadas com Nossa Senhora Azul das Dores, vou fabricando momentos mágicos para você pensar que até continua morando na cidade azul.

         Vigio todos os encantamentos para que você não pense que esteve sonhando...

         Para você pensar que nunca saiu da terrinha... Que até deixou seu coração plantado em alguma esquina...

         _ Quem sabe?

sábado, 24 de maio de 2014



 

Galinhol
Maria

 

O Galinhol está lá no quintalão, cheio de sol, cheio de sombras das árvores grandes, com mil cacarejos e mil piu-pius...

Todos se entendem, naquela linguagem de bicos, cristas, asas e penas lustrosas.

Se há algum desentendimento maior, fazem uma ligeira conferência e a ordem volta a reinar no meio do pessoalzinho do quintal. Ninguém briga por espaços, por comida ou por motivinhos miúdos.

Ontem, apesar do azul de abril, o tempo endoidou: não deu tempo de acudir quase nada, antes que uma chuva pesada inundasse a rua e o quintal. Só não corri para os vizinhos, porque a rua virou um rio que desaguava na Fonte do Povo, minha eterna companheira de sol, de chuvas bravas, de capim verde e lustroso...

Então, fui dar uma espiadinha no Galinhol.

A lama tomou conta de tudo. D. Pata estava esticadinha no canto do muro, e de sua ninhada sobraram três patinhos.

Procurei pelas angolas... Só ficou uma, a mais enxerida, que sempre enfia o bico onde não é chamada. A angola voadeira lá se foi no rio da Fonte do Povo. Bem que eu vi, da minha janela embaçada, alguma coisa diferente rodando, rodando... Era o vestidinho de bolinhas da angola que gostava de capim fresco...

Agora, está assim: a D. Galinha Pintada adotou os três patinhos. A angola implicante também se tomou de amores pela ninhada e vive dando palpites na educação dos patinhos. Vai ver não é tão aborrecida quanto parece...

- Quem sabe, a angola voadeira era sua namorada e ela era um ″angolo″?

Bom, isso é opinião de minha neta, a mais entendida em namoros do pessoal que habita o Galinhol – nome arranjado por minha filha Carla, a mais espirituosa da turma...

- Vovó, acho que aquele patinho é mulher...

- Por quê?

- Olha lá, ela anda requebrando, requebrando...

Os comentários sobre a possível senhorita patinha eram os mais engraçados: ela é dengosa quando está nadando na bacia... Ela nem liga pros pitos que o tio ″angolo″ lhe passa o dia inteiro... Ela é curiosa, sai pra longe sozinha... Ela tem um quá-quá-quá mais delicado e é muito mais barulhenta...

- Tadinha, gente!

Em uma tarde de domingo, fomos encerrar o dia no Galinhol.

A patinha diferente corria, graciosa, lá num canto do quintal. Nada fazia a patinha – futura miss do quintal – vir para junto dos outros. Nem o Tio angolo conseguiu nada. Minha neta foi ajudar a pôr ordem na turminha.

- Vó, olha que gracinha!

Cá da escada da cozinha, eu não conseguia decifrar a causa da rebeldia da patinha...

- Sabe, vovó, ela achou uma borboletinha amarela e está correndo atrás...

Então, a borboletinha voou para longe e a minha neta conseguiu trazer a patinha para o viveiro...

- Não falei, vó? Aposto que ela é mulher...

Foi aí que a borboletinha reapareceu...

A patinha saiu do viveiro  Dava pequenos voos em busca da borboleta que volteava pelo quintal.

- Viu? Ela só pode ser patinha para ser tão boboca assim, né, vovó?

- Claro que ela nunca vai alcançar a borboleta, claro!

Então, meu coração reconheceu baixinho:

- Ela é uma PATINHA-POETA... Daquelas que se encantam com uma singela borboleta amarela... Daquelas que pensam que a borboletinha amarela é uma flor que voa...

Abraçada à minha neta, fomos acolher a noite que descia sobre nossa casa e sobre o Galinhol!