sexta-feira, 31 de janeiro de 2014


CANTORA ANTIGA

MARIA

(Para a Aida, de Petrópolis , que tinha vontade de reler a crônica.)

Obrigada, Aida! Espero que os outros leitores  também  a apreciem, como você)

 

        Todo mundo, em lugar pequeno, fica destacado e conhecido por alguma coisa diferente que faz. Meu pai, por exemplo, era conhecido por saber outras línguas e, principalmente, por usar um terno avançadíssimo pra a época e que ficou chamado de TERNO COR-DE-ROSA... O terno era lindo, de panamá e, pra falar a verdade, ainda hoje não sei definir a sua cor: assim, assim, entre o creme e o pêssego....

        Se encontro alguém do tempo dele, as duas observações vêm juntas, como gêmeas:

        _ Seu pai era um crânio! O professor de francês falava, falava, falava a aula inteira... Ninguém entendia nada... Aí, o Zurinho  (seu nome era Osório )levantava, repetia tudo e explicava o que era...

        Cresci orgulhosa daquele pai que se sobressaía numa escola avançada e moderna para a época:escola para  adultos, isso lá no início da década de 20, onde havia alunos vindos de outros Colégios.Meu pai, que era autodidata- e cresceu na  roça-  se destacava tanto!

                Então, quando me encontro com alguém conhecido, eles se lembram da fama de inteligência do meu pai e, a outra pergunta vem logo:

        _ Seu pai era aquele que tinha um terno COR-DE-ROSA?

        Tento definir a tal cor que, de certa forma, sempre me incomodou um pouco...Pensando bem, meu pai não seria  tão ousado, nem seria capaz de usar um terno COR-DE-ROSA... Nem com toda elegância e charme – características do Sô Zurinho – a época não comportava um senhor vestido daquela maneira. Mas, não teve jeito – o terno ficou sendo COR-DE-ROSA  mesmo...

        Lá em casa era assim: minha irmã erd a BONITA, meu irmão mais velho era o INTELIGENTE, porque, aos quatro anos, sabia  de cor,todos os Estados e Capitais do mundo... Eu era a MIMOSA, o que pode ser traduzido por feinha e, talvez, simpática...dos outros irmãos menores, um era o LEVADO, outro era O QUE CHIAVA , outro era o MIUDINHO  e,  o último, era o dos OLHOS BONITOS... Mamãe, por ser muito retraída, era a SISTEMÁTICA.

        Com o passar do tempo, cada um angariou novos títulos na pequena Estrela do Indaiá.

         E eu, depois de “virar professora na Capital do Estado”, título respeitadíssimo para a época, fui promovida de MIMOSA para CANTORA DE FADOS... Claro, como meu pai,  eu era  avançadíssima para o lugar! E, como estava na moda, incluí em meu repertório de cantora das festinhas, os mais belos fados de Portugal, pois, pois...

        Então, esqueceram o MINOSA – o que, também, de certa forma, me incomodava um pouco...

        Então,vem sempre a pergunta quando a gente se encontra:

        _ Branca, você ainda canta LISBOA ANTIGA?

        Fico meio sem jeito - (meu Deus, não é à toa que falam que sou a cara do pai)..

        Outro dia o telefone tocou:

        _Branca, sonhei com você a noite toda...

        _ Ah, Creusa, que saudade!

        _Olha, sonhei que você estava cantando LISBOA  ANTIGA, a maior beleza, em cima de um barril!

        _ Onde? Em cima de um barril?!...

        E eu, de cá, pensando no tempão que já passou, nos netos que já tenho, no regime que começo toda segunda-feira... E eu, de cá, pensando nas fitas grisalhas que nem sei quem colocou nos meus cabelos, nas pintas antipáticas que marcam minhas mãos, nos óculos que detesto - e que tenho de carregar, bem no meu nariz... E eu, de cá, pensando, pensando, pensando em...em...

  (Ah, Deixa pra lá...)

  Corajosa, com voz alegre e segura, respondi à querida amiga:

  _    Olha Creusa, ainda canto LISBOA ANTIGA  do mesmo jeito...         Agora, subir em um barril, não garanto mais...

        E rindo, com o coração ditando os versos antigos para mim, cantarolei a velha canção a amiga de Estrela, como nos velhos tempos...

        Nos velhos e queridos tempos...

 

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Dores do Indaiá, 6 de maio de 1979.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014


FOGO APAGADO

MARIA

 

        Naquele tempo, todos os homens andavam de terno de brim-cáqui, uma cor-sem-cor, sem-pó, e sem graça.  Os homens daquele tempo eram melancolicamente iguais. Em Dores do Indaiá, inclusive.

Pra completar o figurino, todos usavam bigodes e chapéu-  também cor-de-cuia_-um desastre em termos de elegância...

        Também, naquele tempo-do-onça - somente aos domingo- era permitido deixar o fogo da fornalha apagado. Apagado, apaga-a-a-a-do, não! Ficavam as cinzas cobrindo as brasas _ o famoso borralho _  guardando as fagulhas para um novo fogo.

        Nos dias de  semana, o fogo crepitava o dia todo, acompanhando o trabalho sem trégua. Eram mil cafés, eram mil bocas, eram mil almoços, mil quitandas,  mil jantares, mil ceias. O fogo dormia tardão da noite e mal cochilava no borralho. Madrugada ainda, as brasas eram assopradas e tudo recomeçava.

        Aos domingos, depois  do almoço farto, o trabalho ficava debaixo do borralho, o ânimo se transformava em brasas dorminhocas, debaixo do tépido cobertor de cinzas.

        As domésticas moravam no serviço, como era o costume da época. Mas, aos domingos, tinham uma pequena folga, uma breve pausa de descanso, passeavam, visitavam os parentes e voltavam para fazer o jantar. Claro, aos domingos jantava-se, e bem! Tempo santo!

        Pois, foi num domingo morno, hora do borralho, que o compadre chegou àquela casa. Tudo em silêncio, dormitando.

        O dono da casa chamou a mulher e, foi com os  olhos borralhando, que receberam o compadre _ de mala e cuia, como bispou a mulher.

        Mala guardada, cavalo solto no pastinho, lá se foi a comadre para a cozinha. Ela estava tão apagada quanto aquele fogo da fornalha...

        Assoprou as brasas, avivou o fogo com uns gravetinhos e começou a preparar o “café-do-meio-dia”. Esse nome  queria dizer, quitandas, leite adoçado, café, chás, queijos, biscoito frito na hora... Ah, e o pão de queijo que era servido ainda quentinho...

        Barriga cheia, toca a conversar. Causos e mais causos, risadas sonolentas e antigas, como todos os causos  mineiros.

        Pausa na prosa, Um sono gostoso tomando conta da comadre que sentia as pernas bambas e os braços com-pri-i-i-i-dos, parecendo que ia ter uma morredeira.

        Para espantar o sono, a comadre vai prosear com o marido.

        Chega ä janela que dá para um pequeno jardim e puxa o ar perfumado, chamando forças para o domingo. (Esquentar a água para o banho do compadre, arear a enorme bacia de cobre, ajeitar toalhas, ai, que peleja!)     

        O cheirinho do jardim perfumou o ar, deu-lhe novo alento, foi um refresco na tarde de fogo...

        A comadre encostou-se bem perto do marido, achegou-se bem e cochichou para ele, num desabafo:

        _Será quantos dias esse aborrecido vai ficar? Viu a mala dele?!

        Horrorizada, ela ouviu a voz do compadre explicando:

        _Desculpa, comadre... Não vou delatar muito...

        Mais horrorizada ainda, viu que o homem da janela não era o  o seu marido!!!!!!!!,

        É que, ele também... usava terno de brim-cáqui...E chapéu cor- de-cuia...

 

        Tiveram que esfregar  alho e álcool nos  pulsos da comadre, que teve um desmaio e ficou três dias de cama.

        _E o compadre firme, com a malinha!

Ingenuamente, ainda falava:

        _Coitada da comadre, ficou tão satisfeita com a minha visita que até sofreu um sucesso...

        _Imagina se a patroa tivesse vindo também...

         

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`Dores do Indaiá, 7 de fevereiro de 2007.

Noticidade-2

Jornal NA HORA H  -  janeiro de 1993.

Noticiário apartidário noticioso do Indaiá Clube.

Av. Francisco Campos, 702.

Maria

 

A Dora Argolo, aquela dorense de coração grande, proporcionou-me um início de ano maravilhoso!
Mandou-me, com carta linda, dois álbuns de recortes sobre Dores do Indaiá e sua gente.
Verdadeiro tesouro que está à disposição de todos vocês, para consultas históricas, ou, quem sabe, para matar as saudades de outros tempos.
Dora, seu presente é uma riqueza! Cada recorte pequeno de jornal antigo me traz imensa felicidade – gosto de anotações sobre HISTÓRIA , principalmente de nossa terrinha. Obrigada , com a mão no peito!

 

E não é que Dores, aos poucos, vai-se industrializando? Descobri – e provei - os refrigerantes STICK- fabricados aqui em nossa terrinha, Na Rua Três, 93, no Bairro Walter Ude.Gente, fiquei orgulhosa quando vi o nome de Dores do Indaiá no rótulo das garrafas... E, olhem, o STICK  está rodando - e agradando – nas cidades vizinhas. É isso aí, Paulinho Ude e Nega!

 

Já quis contar e passou... Agora me lembrei: o Dr. Jaime Fernandes, num  gesto muito bonito, resolveu pendência na justiça, em benefício do Dispensário dos Pobres , INTERIRAMENTE DE GRAÇA! Com eficiência e rapidez. Nos tempos de hoje, foi mais do que um bonito gesto, não foi?

 

Além das festas de fim de ano Dores vive bons momentos com a formatura dos filhos da terra.  Recebemos convite de: Alexandre Alves Araújo – Engenharia Civil, filho de Onofre Alves de Araújo e Oleni de Araújo Silva; João Roberto Pinto Ribeiro, Engenharia-Elétrica, filho dos amigos, Paulo Pinto Ribeiro de Andrade e Luzia Pinto de Andradae; Flávio Rodrigues dos Santos, em Medicina, filho de João Batista dos Santos e Maria de Lourdes Rodrigues dos Santos, que estão residindo em Capitólio. Émerson – Ciências Contábeis, filho de Manoel Laureano e Arlete Laureano; Beatriz – Direito, filha de Sebastião Chaves e Lourdes , de Abaeté; Beatriz é sobrinha de Ronaldo (Katatau), da Diretoria do NA HORA H.

 

Os casais José Adilardo de Sousa/Beralda Gabriel de Sousa e Mário Lúcio (im memoriam)-Creusa Hilarino Alves estão convidando pra o casamento de Cioni e Carlos, no dia 30, no Santuário de N. Sra. Das Dores, às 17h.

 

Muito delicado o gesto do padeirinho RODRIGO, filho de Solange e do José Antônio Noronha: ele mesmo escreveu cartões cumprimentando as famílias onde entrega o pão e, de quebra, acrescentou   um bombom. Aprendendo a trabalhar, dando lição de cordialidade e gentileza, coisas que agradam sempre e mostram a educação que o garoto recebeu dos pais.

 

Aviso aos Segurados do IPSEMG: você, professor, servidor público -da ativa ou aposentado- informe-se dos benefícios que temos em nossa cidade e usufrua-se deles. Veja os dentistas conveniados,: Dr. Leivi e Dra. Eliane Antunes de Oliveira e Dra. Kátia de Oliveira Ribeiro. Médicos: Dra. Márcia Cristina Oliveira, que atende na Santa Casa: Exames de Laboratório, com o Dr. Álvaro Alves Caetano, na Praça da Matriz. Informe-se no IPSEMG/ na Prefeitura local.

 

Falando em dentistas, quem acaba de montar consultório na terrinha, é a Dra. Márcia Pinto Ribeiro, especialista em canal (ai, ai, ai), bem ao lado do Posto Shell, dirigido por sua família. Nova opção para os dorenses, não?

 

Sabe quem inovou na Cultura Dorense? É a Elizabeth Lacerda, com suas aulas de Inglês, lá na Praça São Sebastião. Além daquela presença simpática, ela oferece, também, ótimos métodos para  você aprender a língua mais requisitada hoje em dia!

 

Já, a Dra. Eliane . a dentista, cria bonecas supercharmosas – nas horas vagas. As bonecas são vestidas e penteadas por modelos criados por ela mesma. De várias cores  em tamanho grande, elas parecem meninas sapecas, lá na vitrine da Dalva Modas. Ah, ela também cria  casais de bonecos, com roupas ao gosto do freguês. Confira!

Onde funcionou o INPS, foi instalada a moderna CASA DE CARNE – MARAJOARA, muito bem montada, sob a direção de Maurício Oliveira e José Maria. É um grande melhoramento para Dores!

 

Escuta, você se lembra de passar lá na Praça Abaeté e dar uma prosinha com o Zico do Bico? Tadinho, está dodói e fica lá, na janela, doidinho por uma prosa. E... adora bombons! Que tal uma visitinha ao nosso Zico?

 

Aviso: Já tenho a biografia do Professor Waldemar de Almeida Barbosa, que estudantes procuraram comigo e não pude atender. Já organizei a biografia e já passei a cópia para a Biblioteca Municipal. Vale a pena conhecer a vida e obra do premiado dorense!

 

Hoje, começo do ano de 1993, deixo este poema para você ler e refletir. Não importa a idade que você tenha – 15, 20, 50 ou 85 anos...

Ele é muito lindo, e foi escrito por Jorge Luís Borges, argentino, falecido na Suiça em 1987. É considerado um dos maiores poetas do século.

INSTANTES

Jorge Luís Borges.

Se pudesse viver novamente a minha vida,

na próxima, trataria de cometer menos erros.

Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.

Seria mais tolo ainda do que tenho sido, na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.

Seria menos higiêncio.

Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios.

Iria a lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.

Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente, cada minuto de sua vida.Claro que tive momentos de alegria.

Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos.

Porque, se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos: não percas o agora.

Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, um bolsa de água quente, um guarda-chuva e um paraquedas; se voltasse a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono.

Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e briancaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente.

Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.)

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Feliz 1993 para todos!
 

Nota: Hoje, 29 de janeiro de 2014, muitas dessas notícias  já se tornaram saudade. Mas, a MARIA registrou u tudo, ao lado da Diretoria do Indaiá Clube.

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No Expediente do jornal, anotei:

Presidente: Gelciro Caetano.

COORDENAÇÃO

Maria das Dores Caetano Guimarães (Branca)

Nalzira de Fátima Santos.

José Oldack Pinto

Pedro José França de Oliveira

Ronaldo Salviano de Araújo. Composto e Impresso na GRÁFICA ‘O LIBERAL1

Fone: 551 -1720 ainda não tinha o 3 antes...)

Av. Francisco Campos, 736.
 

 

 

E-mail para contato comigo: d.brancacaetano@hotmail.com

 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014


VAZIO

Maria.

Um quintal dá para minha casa.

Tudo tão comum, não fosse o varal.

Um varal tão comum, não fosse a roupa pendurada nele.

Uma roupa tão comum, não estivesse esquecida ali.

 

Uma rua se estende frente à minha casa.

Uma rua tão comum, não fosse o homem que andava por ela.

Um homem tão comum, não fosse seu ar de abandono.

 

Nada me causa tanta solidão como uma roupa vazia no varal.

Ela baila ao vento. Ela perde o viço ao sol. Ela se encharca de chuva.

De repente, um vento mais forte infla a roupa e eu penso que ela está  renascendo.

Roupa no varal me dá tristeza, me lembra desamparo...

Se me pedissem pra desenhar o VAZIO, eu desenharia uma peça de roupa no varal...

 

Nada me causa tanta solidão como ver uma pessoa vazia.

Mesmo estando atravessando uma rua debaixo de um céu azul.

A roupa está lá, pendurada ao vento, como pedindo alento.

O homem passa, tão vazio de vida, como se não tivesse alma.

 

Às vezes, alguém passa por ele, lhe dá um sorriso, ele quase fica alegre e eu penso que ele vai renascer...

Se me pedissem para desenhar o VAZIO, eu desenharia aquele homem triste atravessando a rua azul...

 

Ah, se eu pudesse, eu seria uma brisa dançante e levaria vida para aquela roupa esquecida no varal da casa vizinha.

A roupa ganharia forma, quem sabe ficaria até  até bonita, quem sabe, tem flores pintadas  na sua estampa decorada...

 

Ah, se eu pudesse,  eu seria uma palavra amiga, eu seria um sorriso, eu seria um anjo e levaria esperança para aquele homem vazio, farrapo de gente, corpo sem alma...

Tenho certeza, aquele homem vazio tem uma alma bonita, quem sabe, tem sonhos, tem esperança – tudo encoberto pela solidão, pelo desamparo...

 

Ah, se eu pudesse, eu iria descobrir os segredos daquela roupa vazia, esquecida ao sol, à chuva, cada vez mais enrolada, enxovalhada...

 

Tenho certeza, aquela roupa vazia esconde uma beleza – toda roupa  tem confidências bonitas a fazer. Eu a acolheria, eu a desamassaria, ela iria vestir alguém: quem sabe, iria a um baile e dançaria com sua dona. Quem sabe, iria a uma procissão e rezaria com sua dona. Quem sabe, carregaria um neném em seus braços e teria esperança...

 

Ah, quantas roupas murchas estão esquecidas no varal !

Ah, quanta gente vazia está perambulando pelas calçadas do mundo!

 

E eu aqui, em minha janela, assistindo a tudo isso, debaixo de um céu muito azul.

E o mundo aqui, assistindo a tudo isso, debaixo de um céu lindamente azul...

 

E  a roupa continua murcha e oca, acenando aos passantes...

E o homem continua triste, vazio, acenando aos passantes.

 

Ninguém tem tempo, ninguém para, ninguém busca a roupa no varal... Pensam que ela está velha demais, que ela já não serve para vestir ninguém...Melhor deixar que o tempo rasgue as flores de sua estampa, rompa os seus contornos, suas costuras...

 

Ninguém tem tempo, ninguém para, ninguém abraça o homem triste da rua azul. Pensando que ele está acabado demais, sem alma, talvez... Melhor deixar que o tempo o arraste para o grande vazio.

 

E, para que serve uma roupa seca no varal?

E, para que serve um corpo sem alma?

 

Só Deus, que é poeta, sabe a resposta...

Só Deus acolhe roupas esquecidas no varal.

Só Deus acolhe pessoas esquecidas nas calçadas.

 

Ele sabe amar as roupas secas e desbotadas,

Ele sabe amar os homens vazios e abandonados.

Ele sabe encontrar a alma do  mundo...

 

 

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Dores do Indaiá, 27 de janeiro de 2014.

domingo, 26 de janeiro de 2014


 
BALÉ AO LUAR
 
Maria

 

Não posso definir a data de quando assisti ao primeiro jogo de vôlei – só sei que nunca pude esquecê-lo. Até hoje, em minha memória, não consigo separá-lo da primeira imagem que tenho de outro momento muito bonito: a primeira vez em que vi a figura de uma dança de balé. E, também, nunca pude esquecer o encantamento que a figura me trouxe – o cheiro bom da revista, a beleza das bailarinas que, até então, para mim, eram fadas, anjos, sílfides – não sei direito o que são sílfides, mas acho que são seres muito belos porque, sempre que falo em deusas, sílfides vêm junto...

Então, quando fui ver o jogo de vôlei, incorporei as jogadoras em minhas impressões infantis: vôlei também era balé...

E cresci com essa poética confusão, culpa de meu cenário de infância, já que cresci em um lugar que tem nome de astro – Estrela do Indaiá... Esse nome serve de explicação para muitos de meus devaneios, porque, de verdade, nunca soube direito se vivi em um arraialzinho com casas, igreja, escola, ou se vivi foi numa estrela de verdade, com nuvens, brilhos, anjos e passarinhos... Tanto faz como tanto fez.

Só sei que, de repente, as moças da revista estavam ali, vestidos leves, anáguas rendadas, saias godês que também sabiam dançar. Elas brincavam com uma bola branca, sorriam; um moço soprava um instrumento que eu não conhecia – o apito – e as bailarinas obedeciam àquele sinal. Moviam-se de um lado para outro, davam leves toques na bola branca que dançava de mão em mão, que subia, que descia, que passava por cima de uma rede mágica e dançava e dançava e, às vezes, rolava pelo chão – de terra batida – até que uma fada a pegasse com movimentos graciosos e etéreos. Então, o godê da saia dançava também e as rendas das anáguas apareciam, espumantes e delicadas. E eu não sabia se elas buscavam era a bola ou a lua branca da Estrela...

As bailarinas/jogadoras tinham nomes que me pareciam poemas: Adélia, Aurora, Ofélia, Helena, Zenaide, Luísa, Maria da Luz, Zizinha, Elfra, Nenê, Ilza, Luci, Zazá, Peti, Zuca, Ecilme, Lucy...

Jogavam de sapatinho de salto, anéis nos dedos mimosos e cabelos ao vento...

Completando o cenário, o jogo era realizado à noite, em lugar cercado de poética cerca de bambu que, de tão novinha, espalhava perfume de mato entre nós. O traçado do campo era feito com cal virgem que, de tão branco, rebrilhava à luz da lua que espiava o jogo por entre nuvens e estrelas...

A energia elétrica de Estrela era muito frágil e as lâmpadas apenas cochilavam nos postes de madeira; mais pareciam vagalumes gigantes parados aqui e ali no espaço escuro. Ah! Mas o campo de vôlei era iluminado por holofotes – palavra que me encantava, tal o brilho que carregava... E, até hoje, não vislumbro o porquê da importância que o vôlei tinha para o pequeno lugarejo, tão carente de tudo, menos de poesia...

O ritual era o mesmo:

 Uma voz anunciava para os ouvidos da menina: As férias chegaram! Os estudantes estavam na terrinha!

Estrela se transformava pelo poder daquela fala – uma aura de coisa mágica corria pelas casas e todo mundo ficava feliz, porque as férias chegaram... A menina sempre ficava vigiando para ver se Férias era uma pessoa importante, que rosto ela tinha, por que seu nome era tão poderoso e tinha o sortilégio de transformar a monotonia de um lugarejo que, de tão lindo, se chamava Estrela...

O ritual continuava seu caminho mágico, quando o Zico ou o Valtinho anunciava no vaivém que ia ter vôlei naquela noite. O apito era o sinal! Janelas se abriam, gente saía das casas, as moças iam direto dos flertes do vaivém para o campo de vôlei... De saias rodadas, anáguas e sapatinho de salto...

A plateia se acomodava em bancos de madeira, fincados no chão, debaixo de gameleiras e paineiras que filtravam a luz da lua, formando desenhos e arabescos sobre a alegria da torcida... O homem mais importante do jogo – o juiz – tinha um lugar lá no alto para ficar comandando tudo com seu assobio. Nunca pude esquecer o nome dele – Zé Ema – respeitado pela menina, quase como o soldado, o doutor ou o padre. Quando eu o encontrava, durante o dia, em andanças e descobertas, limpava a garganta, ameigava a vozinha e sorria para ele, como se sorrisse para um deus, cumprimentando-o pelo nome, como gente grande:

- Oi, Zé Ema!!!

Era o bastante para eu ser feliz o dia todo!

Por tudo isso, ainda sou encantada por vôlei e balé...

E, até hoje, não sei se cresci foi num lugarzinho, com casas, igreja e escola, ou se cresci foi numa estrela de verdade, com nuvens, lua e estrelas. Até hoje tenho dúvida...

Meu coração sabe que tanto faz, como tanto fez...

  

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                                               Dores do Indaiá, 30 de maio de 1999

CORRIDA DE TÁXI

Maria.

(Para os filhos do Sô Alcides Oliveira Sobrinho e D. Maria Dalva Soares de Oliveira, nossa querida DALVA MACHADO, que acaba de nos deixar)

        Eu passava pra lá e pra  cá pela frente da rodoviária velha. Ali era o meu caminho para a Escola Normal, onde trabalhava de manhã à noite. De tanto passar, acabei ficando conhecendo todos os taxistas. No interior é assim – só de passar perto, fica sendo conhecido, fica sendo amigo. “Amigo de bom-dia”...

        Era assim que eu conhecia um chofer de praça: bom-dia, um sorriso, como vai, oi, boa-tarde, tudo bem? Isso, por aqui, significa ser conhecido, significa “poder confiar”...

        Era um moço alto, forte, com jeito de comerciante, de dono de cartório, de bancário. Tudo nele era limpo, o carro brilhava, o cabelo preto, sem um fio fora do lugar. Roupas sempre muito limpas, sapatos tão engraxados quanto os pneus de seu táxi.. Era ver o dono, era ver o carro. Por isso, quando voltei de Belo Horizonte, naquele dia, estava tranquila. Gastara os últimos trocados na compra de um livro – Olga Benário - que eu andava louca pra ler.

        Quando entrei no ônibus, vi a cara do motorista, do trocador, a cara do povo... Graças a Deus, estou em casa!

        _ Pra que dinheiro? Chego lá em Dores, pego um táxi e pago lá em casa!

        Olhei, olhei, procurando o Sô Alcides, nosso velho amigo, nomeado CHOFER DA CASA pelo  BEM. Com ele, a turma toda rodava tranquila. Aí avistei o chofer do bom-dia, como vai. Falei com um menino: _ Qual é o nome daquele chofer lá?

        _Ah, é o Zé Arve...

        Eu já esperava a gentileza e a timidez.

        _O senhor pode me levar em casa?

        _Hã..hã...hã...

        _O senhor sabe onde eu moro?

        _Hã.. hã..há...

        _Eu posso pagar lá em casa? Estou sem dinheiro...

        Quis espichar a prosa, explicar mais. O Zé Arve não rompia com o papo.

        _ Posso pagar lá em casa?

        _Hã, hã!

        Tudo certo, descemos a Avenida Francisco Campos. Pela primeira vez o Zé Arve falou uma frase:

        _A senhora ainda mora no mesmo lugar?

        -Hã, hã! Imitei o Zé Arve, já que ele era caladão e tímido. Daqueles que  envermelham só de falar hã, hã.. Aí, em vez de ele virar na São Paulo, que seria o normal, ele seguiu reto. Pensei:

        _Ele vai descer na Rio de Janeiro, já  fica com o carro virado para a rodoviária...

        Qual nada! O Zé Arve subiu pela Zacarias e continuou em frente. Gungunei qualquer coisa e ele, firme, caladíssimo, limpíssimo, eficientíssimo, seguindo em frente. Aí, foi parando, parando, parando... até parar. Eu tentava entender, tentava perguntar:

        _Uai, por que paramos aqui?

        O Zé Arve, vermelhinho, abriu a porta para mim, foi descendo as mil malas e sacolas.

        _Pode descer...

         _Uai, mas eu não moro aqui!...

        _Uai, a senhora falou que morava no mesmo lugar...

        _ Moro mesmo, só que é no outro quarteirão, ali atrás...

        Pensei que o Zé Arve ia estourar de vermelhão. Tentei explicar  
       _ A minha casa é aquela lá, Sô Zé... Não faz mal, está pertinho...

        Ele, encabuladíssimo, voltou as malas pro carro.. Olhou mil vezes para o meu rosto, conferia no espelhinho. Eu sem entender nada.

        Só quando chegamos à minha casa de verdade, ele falou:

        _ Uai... eu pensei que a senhora era das “ALEMOAS’...

        Não ouvi mais nada. Estourei de rir, e ria, e ria, e ria...

        Tapava o rosto com as mãos, via a cara espantada do Zé Arve, como disse o menino, e recomeçava a risada.  Ele foi embora, vermelhinho, no carro limpíssimo, com certeza, pensando que eu não batia bem...

        Na hora, não dei conta de explicar nada ao tímido motorista, porque muita gente pensa que eu sou parente do Walter Alemão,  pensa que a D’Arc Ude é minha mãe, ou  minha tia... Só no outro dia, quando fui acertar com ele, pudemos conversar.

        Me  desculpe, Sô Zé.  Tenho essa mania de rir à toa, nem te paguei ontem...

        _Me desculpe a senhora. Mas... eu jurava que a senhora era das alemoas...

        Tantos anos isso! Depois do caso, ficamos fregueses. E amigos!

        Agora, a morte do Zé Arve. Rezei pra ele não morrer, não era hora. Tão novo, tão cheio de vida! Tão educado, tão eficiente, tão discreto!

        _Meu Deus, devagar a maldade vai chegando cá no interior, cá no sertão. Um lugar  onde a gente conhece todo mundo, só de falar bom-dia, boa-tarde. Um lugar onde a gente entra no táxi, sem falar nome de rua, número de casa, sem dinheiro e sem documento.

        De verdade, Dores está arrasada como a fúria dos assaltantes. Somos um povo simples, amigo. Só queremos trabalhar, cuidar de nossa vidinha, ler o nosso livro, entrar num táxi brilhante  e deixar o motorista rodar. Pelas ruas que nós amamos.

        _Ah, Zé Arve, me desculpe tanto riso e, agora, me desculpe tanta tristeza. (Penso que ele está falando:)

     _ Não é nada... me desculpa a senhora... Mas que a senhora tem a cara das alemoas, ah, isso tem!

        E agora, em que táxi vou andar, sem dinheiro e sem endereço?  Sem o Sô Alcides, que já se foi e deve estar  carregando anjos nas nuvens, sem o Zé Arve... E agora, em que táxi vou andar?

        _ Vocês sabem me contar...

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                 Dores do  Indaiá, 4  de janeiro de 2003

RÁDIO ATIVA


MARIA


 

             Estou de férias. Como sempre, é a mesma coisa: quando tenho tempo, não tenho tempo para nada...

            Ajuntei uma sorte de roupas _ ainda se fala assim? _ para consertar: os netos crescem e as barras das roupas diminuem.

            Separei linhas e estou tecendo uma blusa colorida, de quadrinhos antigos, aprendidos com minha avó Cristina.

            Comecei um bolero de tricô, mais fácil para fazer, vendo televisão – sou noveleira-mestra!

            A tinta do cabelo me espia e eu nem ligo pra ela... Tenho a maior preguiça de pintar cabelo – para mim, um dia perdido. E, quando invento _ hoje estou mineiramente inspirada _ chega visita e eu não posso sair lá fora.. Parece sonho _ é, hoje não tem jeito – estou indo no fundo do baú ...

            Eu, parecendo uma bruxa e a visita toda fresca, de sapato de salto, esperando a dona da casa, às vezes, a escritora... Fica aquele constrangimento, aquela desconfiança no ar, ninguém acreditando na sessão de beleza... Sabe como é: cá pros nossos lados, não há o costume de se avisar  sobre a visita e porta trancada não combina muito com a gente.

            _ Ir ao  Salão? Piorou! Tenho mais preguiça ainda: corto volta de Salão.... por isso mesmo, ando nesta beleza toda!

            Mas eis que tive tempo de ouvir a Rádio Ativa de Dores do Indaiá. Entre músicas e comerciais, o Carlinhos da Rádio – ou seria o Fernando Zica? – lançou ao ar um simpático apelo: D. Fulana está inconsolável e pede a ajuda dos prezados ouvintes: Desapareceu de sua casa um cravo de estimação que atende pelo nome de Louro. Trata-se de relíquia de família. O Louro era de um sobrinho ... O moço  faleceu e ela   adotou o cravo..

            Tive pena da dona do Louro, pena mesmo

            Eu também tinha uma crava, lindinha, a Tataca. Já contei aqui que ela roeu o fio de telefone, uma ligação antiga, lá no barracão e que ficamos sem poder conversar por dias e dias, lembra-se?

            Pois, olha o quê aconteceu com a Tataca... Troquei a gaiola dela de lugar, na maior inocência. A danadinha descobriu outro fio....

            Na manhã seguinte, a Vani gritou:

            _ D. Branca, nossa! A Tataca morreu!

            Não acreditei! A Tataca estava esturricadinha, mortinha, agarradinha aos arames da gaiola. Ela descobriu outro fio... da linha elétrica - que eu nem havia atinado... Chorar foi pouco...

            O Dirceu, meu genro,quis acabar logo com aquela lenga-lenga: fez uma covinha rasa e enterrou a cravinha Tataca.

            Daí, veio uma ventania, varrendo o quintal. Cá de cima da escada, fiquei olhando, olhando sem ver...

            Então, uma folhinha me chamou a atenção- Ah, deve ser uma mudinha que o Eduardo plantou... Vou protegê-la do vento... (O meu filho  gosta de semear plantas antigas e diferentes e eu  o ajudo).

            Fui ver. Não era folha. Era o rabinho da Tataca que ficou de fora....

            Chorei de novo, chorei. E não havia Rádio Ativa que me acudisse...

                            Dores do Indaiá, 12 de abril de 2002.