sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014


FAZ-DE-CONTA

Maria

 

         O  olho azul da janela  me leva para o mundo daquele homem.

         Um homem que venho seguindo desde que começou a preparar a terra para fazer uma horta.

         Quando me levantava mais cedo, bem antes do sol sair de todo, pensava  que iria  surpreender o portão fechado –  Ah, hoje ele ainda não veio!

         Mas ele estava lá, de blusa de frio, chapéu, botinas e o andar pesadão,  se apoiando no cabo da enxada: nesta idade, tudo se transforma em apoio, pensei.

         Mas o homem não desistia. Aos poucos, a terra dura foi-se transformando, já mostrava seu ventre escuro e fofo, ventre de mãe       esperando um filho, quem sabe o primeiro...Agora, o homem já domou aquele chão duro e, do olho azul da minha janela,eu  assistia  o milagre do trabalho do homem velho: uma fila de canteiros obedientes, alunos rebeldes na mão de um mestre sábio...

         Trabalhadores vieram ajudar: carrinhos-de-mão, mangueiras, regadores, blusões vermelhos, amarelos, customizados, contrastando com o agasalho preto e austero do dono da horta. Muitas vezes, assisti o milagre poético de um de um pequeno arco-íris - nascido da boca de um inocente regador iluminado pelo sol...

         Os canteiros ficaram enfeitados e mil carinhas verdes puseram o olho de fora, espiando um mundo que não conheciam: alfaces de cabelos crespos, anelados sorriam pro homem e o homem sorria pra elas. A custo se abaixava, fazia um carinho nos cabelos delas, espantava algum bichinho indiscreto, alisava a careca lustrosa de uma cabeça de repolho e passeava entre os canteiros,  admirando o milagre de sua obra.

         E eu assistindo - pelo azul do olho da janela- aquele deus rústico, soberbo em sua  arte de criar: a expressão  de orgulho era quase como se estivesse acabando de criar o mundo...Um mini-mundo,  milagreiro, onde borboletas chegaram, onde mil insetinhos voavam no ar, onde cachos roxos de amora despontaram na árvore agradecida pelo novo alento...

         Os ajudantes rodavam com carrinhos cheios de esterco, um cheiro de roça entrava pela casa toda e eu achava que estava passeando na casa da vovó Mariquinha, que era benta por aquele cheirinho mágico...

         As árvores do lote ficaram pesadinhas de pardais, todos esperando um descuido do homem , doidinhos pra bisparem alguma sementinha nova...

         Uma manhã, não achei o homem em seu jardim verde.

         Em muitas manhãs, ele não apareceu. Vinha uma mulher, vinha uma bela moça, vinha até um menino fazer as vezes do homem.                          

Lá um belo dia, eis o dono da horta! Mas...Era um fantoche do que ele fora: frágil, tudo se negava a SER. O agasalho largo lhe caia pelos ombros moles. O chapéu ficou de pano. O rosto, amoleceu, a boca ficou muito maior do que o seu sorriso bambo... As pernas, ah! As pernas de velho viraram duas bengalas de gelatina...

 

 

        

         Ele continua lá – sem a majestade primeira: agora seu trono é uma cadeira de plástico amarela, meio escondida entre o muro duro e as alfaces macias de cabelos anelados...

         Eu vejo uma tristeza infinita em seu olhar de agora eu estou no faz-de-conta: enquanto a mulher   toca os pardais, moços rodopiam entre os canteiros. O rei deposto vigia tudo do seu trono de ouro...Dá algumas ordens bambas, a mulher o ajuda a se levantar do trono de plástico, ele ameaça um carinho nas suas rosas verdes, volta pro trono:  agora é um triste espantalho de sua horta...

         Ele de lá, eu de cá .Ele no faz-de-conta de que ainda é rei... Eu, no faz-de-conta de que ainda sou professora nova...

         Entre nós há uma janela azul...

         Ah,  me esqueci de contar- a janela nem é azul: o que é azul é o céu que ilumina nossos dois mundos...

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                            Dores do Indaiá, 12 de maio de 2009

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