FAZ-DE-CONTA
Maria
O olho azul da janela me leva para o mundo daquele homem.
Um
homem que venho seguindo desde que começou a preparar a terra para fazer uma
horta.
Quando
me levantava mais cedo, bem antes do sol sair de todo, pensava que iria
surpreender o portão fechado –
Ah, hoje ele ainda não veio!
Mas
ele estava lá, de blusa de frio, chapéu, botinas e o andar pesadão, se apoiando no cabo da enxada: nesta idade,
tudo se transforma em apoio, pensei.
Mas
o homem não desistia. Aos poucos, a terra dura foi-se transformando, já
mostrava seu ventre escuro e fofo, ventre de mãe esperando um filho, quem sabe o
primeiro...Agora, o homem já domou aquele chão duro e, do olho azul da minha
janela,eu assistia o milagre do trabalho do homem velho: uma
fila de canteiros obedientes, alunos rebeldes na mão de um mestre sábio...
Trabalhadores
vieram ajudar: carrinhos-de-mão, mangueiras, regadores, blusões vermelhos,
amarelos, customizados, contrastando com o agasalho preto e austero do dono da
horta. Muitas vezes, assisti o milagre poético de um de um pequeno arco-íris -
nascido da boca de um inocente regador iluminado pelo sol...
Os
canteiros ficaram enfeitados e mil carinhas verdes puseram o olho de fora,
espiando um mundo que não conheciam: alfaces de cabelos crespos, anelados
sorriam pro homem e o homem sorria pra elas. A custo se abaixava, fazia um
carinho nos cabelos delas, espantava algum bichinho indiscreto, alisava a
careca lustrosa de uma cabeça de repolho e passeava entre os canteiros, admirando o milagre de sua obra.
E
eu assistindo - pelo azul do olho da janela- aquele deus rústico, soberbo em
sua arte de criar: a expressão de orgulho era quase como se estivesse
acabando de criar o mundo...Um mini-mundo,
milagreiro, onde borboletas chegaram, onde mil insetinhos voavam no ar,
onde cachos roxos de amora despontaram na árvore agradecida pelo novo alento...
Os
ajudantes rodavam com carrinhos cheios de esterco, um cheiro de roça entrava
pela casa toda e eu achava que estava passeando na casa da vovó Mariquinha, que
era benta por aquele cheirinho mágico...
As
árvores do lote ficaram pesadinhas de pardais, todos esperando um descuido do
homem , doidinhos pra bisparem alguma sementinha nova...
Uma
manhã, não achei o homem em seu jardim verde.
Em
muitas manhãs, ele não apareceu. Vinha uma mulher, vinha uma bela moça, vinha
até um menino fazer as vezes do homem.
Lá um belo dia, eis o dono da horta!
Mas...Era um fantoche do que ele fora: frágil, tudo se negava a SER. O agasalho
largo lhe caia pelos ombros moles. O chapéu ficou de pano. O rosto, amoleceu, a
boca ficou muito maior do que o seu sorriso bambo... As pernas, ah! As pernas
de velho viraram duas bengalas de gelatina...
Ele
continua lá – sem a majestade primeira: agora seu trono é uma cadeira de
plástico amarela, meio escondida entre o muro duro e as alfaces macias de
cabelos anelados...
Eu
vejo uma tristeza infinita em seu olhar
de agora eu estou no faz-de-conta: enquanto a mulher toca os pardais, moços rodopiam entre os
canteiros. O rei deposto vigia tudo do seu trono de ouro...Dá algumas ordens
bambas, a mulher o ajuda a se levantar do trono de plástico, ele ameaça um carinho
nas suas rosas verdes, volta pro trono: agora é um triste espantalho de sua horta...
Ele
de lá, eu de cá .Ele no faz-de-conta de que ainda é rei... Eu, no faz-de-conta
de que ainda sou professora nova...
Entre
nós há uma janela azul...
Ah,
me esqueci de contar- a janela nem é
azul: o que é azul é o céu que ilumina nossos dois mundos...
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Dores do Indaiá, 12 de maio de 2009
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