quinta-feira, 25 de agosto de 2016


O BIFE DA TOTA

Maria

Ela era niquenta pra comer. Era cheia de titicas, cheia de dedos, a minha cunhada.

 

Fora de casa, era conhecida pela distinção, discreta, por uma  grande timidez.

 

Inteligente e culta, tinha mil recortes, minuciosamente catalogados e guardados a sete chaves.

 

O  armário da Tota era um tesouro e o dia em que ela resolvia abri-lo, era uma festa para a sobrinhada e... para mim, a cunhada, bem mais nova que a turma toda da casa, vista como uma mocinha curiosa...

 

Tudo que a gente sonhava e precisava estava lá: poesias, biografias, letras de músicas, gravuras, receitas, moldes, amostras de crochê e bordados - era um Bazar, o armário da Tota. Aquele BAZAR parecia gente e tinha até apelido...”ARMAZÉM MEDEIROS” cujo nome era cochichado, em tom de troça ... e de inveja...(A Tota fingia não ouvir, mas ficava meio desconfiada e o silêncio voltava)

 

Agora, tesouro  mesmo que ela possuía, era sua memória. A gente dava um mote, puxava um pequenino  fio e ela, tímida a princípio, desfiava a História de Dores do Indaiá com datas precisas, com detalhes interessantes, sobre parentescos, casamentos, costumes antigos e casos engraçados.  Enquanto conversava, com um pé, ligeiramente no ar, ia ritmando a conversa com o chinelo na pontinha dos dedos, bem na pontinha... E, quando ele ia caindo, ia ca-in..in...do...o-o-o-o, a Tota fazia uma pirueta graciosa com o pé e o chinelo voltava ao lugar.

E a História e a música continuavam. Às vezes, cantávamos juntas e ela disfarçava a timidez  correndo a medalhinha do cordão de ouro, pra lá, pra cá, pra lá, pra cá...

 

Mas, como eu dizia, a Tota era niquenta para comer. As irmãs que, na falta da mãe, passaram a dirigir a casa, tudo faziam para que a Tota se alimentasse bem, porque - me esqueci de contar- ela tinha a saúde delicada e uma asma que não a deixava em paz. Daí... o momo todo...

 

As irmãs cochichavam - em tom de uma zanga  carinhosa:

 

_Ah, a Tota é assim, mas  é só aqui em casa...

_Quando viaja, nas férias, oh, come de tudo nos hotéis...

 

E contavam como a Tota apreciava a comida do Hotel “São Domingos,” em Belo Horizonte, segundo as companheiras de viagem, todas professoras, em Curso de Férias...

 orizonte, HorizonteHoorizonte

      

Mas, em casa, era desconfiada com a mesa, com os talheres, com os cheiros, com os temperos, uma graça.

 

Durante as refeições, todo cuidado era pouco: qualquer assunto meio atravessado enfastiava a Tota.

 

E o Tonico Caetano, tio e vizinho, já aposentado, almoçava mais cedo e ia tumbar as prosas na casa do irmão.

 

Aí, a Tota chegava do Grupo, onde era Professora de ARTES. A sessão do almoço começava com a pontualidade e um leve ar cerimonioso, característicos da casa: as pessoas, os móveis, a fala, os causos, tudo era tradicional e muito, muito reservado...Eram mineiros da gema, já se vê...

 

Gente, até hoje, não sei porquê, naquela casa tão tradicional, ia-se comer uma inusitada carne de búfalo – novidade surgida há pouco e recebida com cautela pela população. Búfalo! Logo na casa da Tota! (Eu desconfio que isso foi arrumação do Tonico, mais aberto às novidades...)

 

Claro, o Tonico Caetano , alegre e gozador, participou do segredo do almoço e aguardava, curioso o desfecho ...

 

Tudo certo, tudo normal, mesas, rostos, passos e tons de voz, tudo muito velado, tudo muito formal. E... foi aí que erraram: De repente...Parece que houve algum sinal misterioso no ar e todos quebraram o costume da casa:

Começou pela cozinheira, a Maria Loura, que  veio da cozinha com a travessa de carne, palpitando:

_ Hoje a carne tá tão cheirosa!

 Parece que foi o sinal misterioso...

 Todos se animaram e  saíram do sério, cada um cuidou de elogiar a carne...

_ Que carne macia!

_ Que cheiro bom!

_Hoje a Maria acertou no tempero!

Até o Sô Joãozinho, o chefe da casa, resolveu dar o seu parecer:

_ É... Carne tem de ser lá do Zé Ingué! É por isso que faço questão de ir lá, todo dia – trago a carne fresquinha....

 

A Tota, muito viva e observadora, examina o bife: antes de servir-se, vira a carne pra  pra lá, vira a carne  prá cá e decide:

 

_ É... tem dúvida aqui.... Vocês estão elogiando demais essa carne! Tem uma dúvida qualquer...

_ Desconfiada,  niquenta, ressabiada, desculpou-se e saiu da  mesa...

Nesse dia, passou a mingau, para aflição das irmãs...

As gargalhadas do Tonico e do meu sogro, Sô Joãozinho, retumbavam lá na Praça antiga, longe da Tota, emburrada no quarto...

Aprendi. Aprendemos todos aqui em casa. Quando uma coisa é muito elogiada, muito explicada, calma lá! Tem coelho nesse mato...

E a gente sempre avisa pro outro:

_Olha o bife da Tota.

E temos nos safado de poucas e boas!

_Mineiro é bicho desconfiado, dizem todos.

_Será?

2 comentários:

  1. Adorei a crônica , D. BeancB.
    Toda família que seprezes, tem uma Tota dessas...
    Kkkkkkkkk
    Beijo afetuoso do seu amigo
    Waltinho

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    Respostas
    1. Desculpe-me o erro do nome, quis dizer D. branca...
      (Corretor ortográfico sutomautom)

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