quinta-feira, 25 de agosto de 2016


NO PORTÃO FECHADO.

Maria

 

        A voz entrou pela casa a dentro, embarafustou-se pelo corredor, alcançou-me na cozinha e a curiosidade se instalou em meus passos.

         _Quem será? Nossa, e já fechei o portão...

         Ajeitei o cabelo de menina – na testa de vó – tentei livrar os olhos daquela franjinha adolescente, completamente inadequada para  a dona da casa. 

         -Eta cabelo teimoso, pior que o meu coração. Tudo envelheceu, menos ele. Não segura grampo, não segura arquinho, não se prende com gominhas...

         Pronto. Cheguei ao portão fechado.

         Era outra senhora, miudinha, bem arrumada, com bolsa elegante, conjunto discreto...

         _Você é a ... a...

         _ Lilita, falamos juntas!

         _Vou pegar a chave...

         _ Não vai, eu só estou passando...

         _ Mas, tantos anos assim não podem só passar no portão...

         Rimos juntas.

         _ Lilita...

         _Branca....

         A gente ria, eu ia pegar a chave, não pegava, ela ia embora, não ia, ela ia entrar, não entorou, ela ia ...

         A visita ficou assim, entre grades: eu de cá, ela de lá – duas prisioneiras da infância, da casa da Tia Alice, da casa do Tio Vicente-  a gente era prima de mentirinha, de verdade verdadeira...

         _Eu fui madrinha do Marquinhos, com seu irmão Carlos...

         Um silêncio, uma piscadela molhada...

         _Eu sou madrinha da Gislene... Madrinha de sapatinho...

         _Eu nunca ouvi falar nessa madrinha....

         Rimos de novo...

         -É, Lilita, eu segurei os sapatinhos de lã da Gislene, na hora do batizado... Pra untar os pezinhos da neném com óleo bento...

         _Gente..

         _Pois é, Sou madrinha dela... De sapatinho....

         _Me fala: quero um livro seu, o último, porque o primeiro já sei de cor e salteado...

         O salto no tempo foi tão grande, que demorei a perceber que a menina já era uma senhora. Escritora.

         Fiquei meio acanhada do título - há tanto tempo não nos víamos.  E, nesse pedaço de vida, inventei de escrever Estrela, Dores, lugares, gente...

         _ Sabe, peguei um táxi e fui lá na sua Estrela, só pra ver sua casa, a do livro.

         Segurei nas grades do portão – minha casa!

         _ Mas, ela não existe mais, perguntei pro homem do Posto...

         -E a igreja?

         _ Estava fechada...

         -Aí voltei e vim te ver...

         -Vou pegar a chave...

         _Não vai, não – estou no Hotel, não posso me demorar. Me dá o livro...

         Voltei com um livro e tive a impressão de que nunca o tinha visto...

         _ Que bom – ele é maior do que o outro! Ah, vou ler até de madrugada...

         Rimos lágrimas juntas...

         Passei o livro pelas grades do portão, quem sabe com medo de que ela partisse, miragem, como chegou,

         _ Pôs dedicatória?

         Fiquei vermelha, como há tempos não ficava... Imagina, eu fazer dedicatória pra Lilita, testemunha de minhas alegrias, as pequenas... Pequenas, não: as mais belas e maiores!

         _Faço questão...

         Escrevi, meio desajeitada, pensando que ela é que tinha que fazer uma dedicatória para mim. Pela poesia do encontro.

         _ Escreve...

         E eu, que tenho mania de escrever uma crônica para cada leitor, só consegui deixar lá, debaixo do pêndulo antigo que enfeita a página:

         “Lilita, obrigada pela Hora Mágica que me proporcionou hoje.”
 

         Nós nos abraçamos, pelas grades, presas lá longe no tempo-menino.

         Um beijo velho/infantil. Com gosto de ferrugem das grades...

         Ela foi tropeçando, parando, lendo, voltando, indo, não indo.

         Então, só pra ter o que dizer, ouvi , de novo, sua voz:

         _Amanhã vai ser lua cheia – olha, ela já está quase fechada...

         E eu repeti, com uma voz que era a de minha mãe, que só ela falava assim:

         _ É mesmo... A lua tá derramando....

        -Derramando o quê?

          Deve ser poesia que a lua derrama em portões velhos....

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Dores do Indaiá, 11 de fevereiro de 2014.

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