Nó
cego
Com uma “plateia seleta e rara”,
composta do BEM e de alguns netos, fui intimada a contar mais causos das
Gerais. Afinal, até os psicólogos
explicam os tais atalhos, os nós cegos que acontecem quando a gente fala uma
coisa sem querer. Quem sabe a alma não quer falar, exatamente, através da falta
de jeito?
Até o nosso Presidente, tão preparado,
de vez em quando, deixa escapar algum atalho inconveniente e... depois se
debulha em explicações. Até hoje, nós todos nos lembramos de que fomos,
clamorosamente, chamados de CAIPIRAS por ele, perante o mundo todo! E todos nós
ouvimos suas explicações bambas de que CAIPIRA é o mesmo que SIMPÁTICO... Será?
Ah! E um sisudo presidente francês, visitando nosso país, jamais será esquecido
pela célebre conclusão a que chegou e que falou “sem querer-querendo”:
“DECIDIDAMENTE, O BRASIL NÃO É UM PAÍS SÉRIO...” E, se Suas Excelências são
traídos pela voz da alma, do subconsciente, imagina o povão e o povinho...
Uma dona de casa esmerou-se, arrumando
tudo, para receber a visita de uma colega que, desde que se formaram, se mudara
para o exterior. Um chique!
A visita chegou. De relance, ao
recebê-la, a dona de casa notou a velha almofada – relíquia de família – bem à vista. Rapidamente,
jogou-a atrás da primeira porta que encontrou e foi cumprimentar a visita.
Saudades, lágrimas, emoções. Que bondade!
A dona de casa nem percebeu a entrada
do luluzinho da colega! E detestava cachorros! De-tes-ta-va!
Tudo certo. Nunca se viu tanta
cortesia!
De repente... Horrorizada, a dona de casa
vê sair do quarto da frente, nada
mais, nada menos do que “um cachorro″ arrastando a velha e “baselenta”
almofada.
Rápida, levantou-se, explicando:
- Aqui no interior é assim, cheio de
cachorro sem dono... E tocou-o para a rua.
Aflita, jogou a almofada na poltrona,
assentou-se em cima e... tudo bem.
Só aí que ela notou, surpresa: a
colega abria a porta cheia de dengos.
- Que lindinho, vem cá com “a mamãe”!
No fuá, a almofada (re)apareceu e o
lulu, vitorioso, arrastou-a para junto da colega chique... uma madame!
Que atalho! Que nó cego!
***
Minha irmã, parecidinha comigo, foi à
casa da comadre ver a reforma. A comadre insistiu, insistiu e, lá um belo dia, ela
então foi. Bateu, chamou, tocou campainha, ouviu vozes, muitas vozes. Fez-se um
silêncio. Minha irmã entrou, “era da casa”. A cozinha estava em festa – todos
comendo pamonhas, um cheiro! Ninguém se aluiu do lugar... Não queriam visitas
àquela hora! A comadre acudiu, foi (des)conversando, foi (des)conversando, e
minha irmã tratou de se despedir.
- Vai não, comadre, tá cedo!
E a minha irmã, vexada por atrapalhar
a “pamonhada″ da comadre, saiu-se com esta:
- Não, eu preciso ir... tá na hora de
esquentar a PAMONHA pros meninos...
Já viu, a pamonha era a janta...
- Ai, ai, ai!
***
A madrinha do garoto, mimado como ele
só, chegou bem à hora em que ele ia dormir.
Um garoto bem grande, com seus quatro ou cinco anos, ainda precisava usar fralda descartável – fazia xixi na
cama.
A mãe, doida para dar uma prosa com a
comadre, apressou:
- Corre lá, filhinho, corre! Busca a
fralda pra mamãe te arrumar!
O menino passou, sem roupa, voando!
A madrinha não acreditou! Fral-da!
- Desse tamanhão, era só o que
faltava! (Claro, só pensou, pensou, pensou!)
Como o garoto demorasse, a madrinha
gritou lá para o quarto:
- Depressa, anda! Traz logo a sua... o
seu... BUNDEIRO!...
Será que o menino ainda fez xixi na
cama? Du-vi-d-o-dó!
Novos
sons
Estou em Belo Horizonte.
Estou sozinha. O tricô ficou para
trás. Os netos, a casa, Dores do Indaiá e sua paz estão longe.
Eu nem sabia que meu coração sentiria
falta dos passarinhos que voam soltos pelos quintais. Ah! E dos periquitinhos
que gritam nas gaiolas. Ah! E dos
pombinhos “Hamburguês” que cantam e riem como gente grande. Miados de gatos, cocoricós
das galinhas, os pintinhos com seus gritinhos alegres, as galinhas-d’angola que
enchem o silêncio com o “tô fraco” de sempre. É, eu não sabia que meu coração
anota tudo isso, esses sons que já são parte de minha casa.
Agora, fico perscrutando os novos
sons, aqueles que não são os meus. Quem sabe, entre eles, acharei algum canto
de galo para alegrar meu coração! Ah! Eu queria um canto de quintal nessa tarde
solitária, sem céu e sem sol!
O som estridente do portão eletrônico
é seco e rápido. Aos poucos, a tarde se veste de noite e os mil prédios vão-se
acendendo. Meu coração se anima. Crianças conversam e riem perto do elevador.
Tento ouvir mais – saudades das netas. Pena, uma porta qualquer abafou a música
daquelas vozes. Silêncio de novo.
Ligam as televisões e os aparelhos de
som. Ouço fiapos de falas e de
músicas desencontradas. Mais luzes acesas.
Chegam vozes de um prédio bem vizinho.
Uma mulher está nervosa. Sua voz é
cheia de nós – quem será que amarrou a voz da mulher? A voz de parece com o
tlec-tlec do portão. Rápida e seca.
Duas crianças conversam com a mãe. Nem
a alegria delas adoça aquela voz -de
portão-eletrônico. Ainda não se
desvestiu dos problemas lá de fora. A voz-
de mulher/portão solta pancadas secas pelas janelas abertas. - Tlec! Tlac! Tlec! Tlac”!
Um menininho fala com a voz de quem
está incólume à aspereza da cidade grande.
- Mamãe, você vai fazer sopa?
A voz da mãe se abranda um pouco e é
quase bonita.
- Vou, vou fazer sopa.
Respiro aliviada. Bendita sopa da boca-da-noite. Os sons da cozinha enfeitam a rua e dançam pela janela
aberta. A mulher já conversa mais alegre e, só de vez em quando, ouço os
tlec-tlacs. De sua voz e da faca que pica os legumes.
Um cheiro bom se espalha no ar e a
panela de pressão chia alto.
Alguma coisa se parte no chão. A voz- de- portão volta e espalha a
ternura do momento para longe. Fico triste. As crianças se calam. Ah! Meu Deus,
tão bom se um passarinho cantasse. Quem sabe, se um gato coriscasse por aqui,
se um cachorrinho latisse? Nada! Nada acontece e o tlec-tlac martela o ar.
Tenho pena dos menininhos...
De repente, a televisão anuncia: A
POESIA ESTÁ EM BELO HORIZONTE! É A BIENAL DA POESIA!
Um menininho se anima!
- Mãe, o que é POESIA?
A mulher para de martelar a lingüeta do portão-eletrônico. Se encabula,
tenta, tenta. A voz do menininho quer saber: POESIA, POESIA, POESIA...
A panela de pressão chia. O prédio
todo se aquece e a ternura entra pelos mil olhos de vidro.
Todos se reúnem em volta da sopa. As
crianças estão alegres. A voz da mulher é doce e maternal.
Bendita sopa da boca- da- noite! Bendita Poesia!
O menininho insiste. A mãe, com a voz
terna, promete perguntar ao pai, quando ele chegar...
A porta se abre. É o pai que chega.
- Papai, o que é POESIA?
- POESIA... POESIA... ESPERA AÍ...
Tenho vontade de gritar pela janela:
- POESIA é uma sopa quentinha e
cheirosa! É uma mãe de voz doce e um pai que chega do serviço!
Meu coração repete:
- POESIA é um ANJO, com cara de
criança, com voz de filho pedindo sopa na boca-
da noite...
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