sábado, 31 de maio de 2014



 

Nó cego

 

Com uma “plateia seleta e rara”, composta do BEM e de alguns netos, fui intimada a contar mais causos das Gerais.  Afinal, até os psicólogos explicam os tais atalhos, os nós cegos que acontecem quando a gente fala uma coisa sem querer. Quem sabe a alma não quer falar, exatamente, através da falta de jeito?

Até o nosso Presidente, tão preparado, de vez em quando, deixa escapar algum atalho inconveniente e... depois se debulha em explicações. Até hoje, nós todos nos lembramos de que fomos, clamorosamente, chamados de CAIPIRAS por ele, perante o mundo todo! E todos nós ouvimos suas explicações bambas de que CAIPIRA é o mesmo que SIMPÁTICO... Será? Ah! E um sisudo presidente francês, visitando nosso país, jamais será esquecido pela célebre conclusão a que chegou e que falou “sem querer-querendo”: “DECIDIDAMENTE, O BRASIL NÃO É UM PAÍS SÉRIO...” E, se Suas Excelências são traídos pela voz da alma, do subconsciente, imagina o povão e o povinho...

Uma dona de casa esmerou-se, arrumando tudo, para receber a visita de uma colega que, desde que se formaram, se mudara para o exterior. Um chique!

A visita chegou. De relance, ao recebê-la, a dona de casa notou a velha almofada – relíquia de família – bem à vista. Rapidamente, jogou-a atrás da primeira porta que encontrou e foi cumprimentar a visita. Saudades, lágrimas, emoções. Que bondade!

A dona de casa nem percebeu a entrada do luluzinho da colega! E detestava cachorros! De-tes-ta-va!

Tudo certo. Nunca se viu tanta cortesia!

De repente... Horrorizada, a dona de casa vê sair do quarto da frente, nada mais, nada menos do que “um cachorro″ arrastando a velha e “baselenta” almofada.

Rápida, levantou-se, explicando:

- Aqui no interior é assim, cheio de cachorro sem dono... E tocou-o para a rua.

Aflita, jogou a almofada na poltrona, assentou-se em cima e... tudo bem.

Só aí que ela notou, surpresa: a colega abria a porta cheia de dengos.

- Que lindinho, vem cá com “a mamãe”!

No fuá, a almofada (re)apareceu e o lulu, vitorioso, arrastou-a para junto da colega chique... uma madame!

Que atalho! Que nó cego!

 

***

 

Minha irmã, parecidinha comigo, foi à casa da comadre ver a reforma. A comadre insistiu, insistiu e, lá um belo dia, ela então foi. Bateu, chamou, tocou campainha, ouviu vozes, muitas vozes. Fez-se um silêncio. Minha irmã entrou, “era da casa”. A cozinha estava em festa – todos comendo pamonhas, um cheiro! Ninguém se aluiu do lugar... Não queriam visitas àquela hora! A comadre acudiu, foi (des)conversando, foi (des)conversando, e minha irmã tratou de se despedir.

- Vai não, comadre, tá cedo!

E a minha irmã, vexada por atrapalhar a “pamonhada″ da comadre, saiu-se com esta:

- Não, eu preciso ir... tá na hora de esquentar a PAMONHA pros meninos...

Já viu, a pamonha era a janta...

- Ai, ai, ai!

 

***

 

A madrinha do garoto, mimado como ele só, chegou bem à hora em que ele ia dormir.

Um garoto bem grande, com seus quatro ou cinco anos, ainda precisava usar fralda descartável – fazia xixi na cama.

A mãe, doida para dar uma prosa com a comadre, apressou:

- Corre lá, filhinho, corre! Busca a fralda pra mamãe te arrumar!

O menino passou, sem roupa, voando!

A madrinha não acreditou! Fral-da!

- Desse tamanhão, era só o que faltava! (Claro, só pensou, pensou, pensou!)

Como o garoto demorasse, a madrinha gritou lá para o quarto:

- Depressa, anda! Traz logo a sua... o seu... BUNDEIRO!...

Será que o menino ainda fez xixi na cama? Du-vi-d-o-dó!

 

Novos sons

 

Estou em Belo Horizonte.

Estou sozinha. O tricô ficou para trás. Os netos, a casa, Dores do Indaiá e sua paz estão longe.

Eu nem sabia que meu coração sentiria falta dos passarinhos que voam soltos pelos quintais. Ah! E dos periquitinhos que gritam nas gaiolas. Ah! E dos pombinhos “Hamburguês” que cantam e riem como gente grande. Miados de gatos, cocoricós das galinhas, os pintinhos com seus gritinhos alegres, as galinhas-d’angola que enchem o silêncio com o “tô fraco” de sempre. É, eu não sabia que meu coração anota tudo isso, esses sons que já são parte de minha casa.

Agora, fico perscrutando os novos sons, aqueles que não são os meus. Quem sabe, entre eles, acharei algum canto de galo para alegrar meu coração! Ah! Eu queria um canto de quintal nessa tarde solitária, sem céu e sem sol!

O som estridente do portão eletrônico é seco e rápido. Aos poucos, a tarde se veste de noite e os mil prédios vão-se acendendo. Meu coração se anima. Crianças conversam e riem perto do elevador. Tento ouvir mais – saudades das netas. Pena, uma porta qualquer abafou a música daquelas vozes. Silêncio de novo.

Ligam as televisões e os aparelhos de som. Ouço fiapos de falas e de músicas desencontradas. Mais luzes acesas.

Chegam vozes de um prédio bem vizinho.

Uma mulher está nervosa. Sua voz é cheia de nós – quem será que amarrou a voz da mulher? A voz de parece com o tlec-tlec do portão. Rápida e seca.

Duas crianças conversam com a mãe. Nem a alegria delas adoça aquela voz -de portão-eletrônico. Ainda não se desvestiu dos problemas lá de fora. A voz- de mulher/portão solta pancadas secas pelas janelas abertas.        - Tlec! Tlac! Tlec! Tlac”!

Um menininho fala com a voz de quem está incólume à aspereza da cidade grande.

- Mamãe, você vai fazer sopa?

A voz da mãe se abranda um pouco e é quase bonita.

- Vou, vou fazer sopa.

Respiro aliviada. Bendita sopa da boca-da-noite. Os sons da cozinha enfeitam a rua e dançam  pela janela aberta. A mulher já conversa mais alegre e, só de vez em quando, ouço os tlec-tlacs. De sua voz e da faca que pica os legumes.

Um cheiro bom se espalha no ar e a panela de pressão chia alto.

Alguma coisa se parte no chão. A voz- de- portão volta e espalha a ternura do momento para longe. Fico triste. As crianças se calam. Ah! Meu Deus, tão bom se um passarinho cantasse. Quem sabe, se um gato coriscasse por aqui, se um cachorrinho latisse? Nada! Nada acontece e o tlec-tlac martela o ar. Tenho pena dos menininhos...

De repente, a televisão anuncia: A POESIA ESTÁ EM BELO HORIZONTE! É A BIENAL DA POESIA!

Um menininho se anima!

- Mãe, o que é POESIA?

A mulher para de martelar a lingüeta do portão-eletrônico. Se encabula, tenta, tenta. A voz do menininho quer saber: POESIA, POESIA, POESIA...

A panela de pressão chia. O prédio todo se aquece e a ternura entra pelos mil olhos de vidro.

Todos se reúnem em volta da sopa. As crianças estão alegres. A voz da mulher é doce e maternal.

Bendita sopa da boca- da- noite! Bendita Poesia!

O menininho insiste. A mãe, com a voz terna, promete perguntar ao pai, quando ele chegar...

A porta se abre. É o pai que chega.

- Papai, o que é POESIA?

- POESIA... POESIA... ESPERA AÍ...

Tenho vontade de gritar pela janela:

- POESIA é uma sopa quentinha e cheirosa! É uma mãe de voz doce e um pai que chega do serviço!

Meu coração repete:

- POESIA é um ANJO, com cara de criança, com voz de filho pedindo sopa na boca- da noite...

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