quinta-feira, 8 de maio de 2014


 
Todo 8 de maio, minha memória afetiva  traz-me aquela noite linda, lá de Estrela do Indaiá.
E... hoje é outro 8 de maio....
 
 
 
O MAIO DA PAZ

Maria

 

        

 

         Estávamos subindo para  o altar. Era maio. Éramos dois anjos, um azul, outro branco. Era tempo de pai, de mãe de flores, de asas brancas e diademas de estrelas... Nosso céu era nossa casa. Ou, quem sabe, a nossa casa era o céu...

         Minha irmã era o anjo branco. O azul era uma menina que “hoje é minha vó”. Avó de minhas lembranças. A menina   é a mesma. Fiquei sendo avó de mim.Sou avó daquele anjo azul que eu era naquele oito de maio de 1945.

         A igrejinha branca cantava: mês de maio/mês de flores/mês de amores a Maria... Nossa Senhora   esperava no altar. A coroa andava nas mãos de minha irmã, as flores e as palmas andavam nas outras mãos, balançando as cabecinhas perfumadas para o povo singelo que rezava na igrejinha. O Padre César parecia um rei sem trono, com suas vestes bordadas de dourado. Os coroinhas  com as mãos escondidas dentro das mangas largas                  das batas de renda. E  meu irmão era um deles,   matando-me de inveja com sua sotaina de flanela vermelha e a sobrepeliz aberta em crivo. Ah! Eu daria tudo para ser coroinha! Mas menina só podia ser anjo...

          De repente, um grupo tomou conta da igrejinha, tomou conta do “Mês de maio/mês de flores”, tomou conta das rezas das   mulheres. O homem, chapéu na mão, gritava  pela igreja

         _ A guerra acabou! A guerra acabou!

         Assombro, silêncio. Cochichos, murmúrios, pessoas saindo de seus lugares. Alguns homens saíram apressados da igreja. O padre pediu silêncio. Que aguardassem. Era preciso ter certeza. Meu pai, de terno de panamá, “cor-de-rosa”, irrompeu entre os bancos, seguido         de outros homens .

         Então, papai fez uma coisa incomum. Eu, nos meus sete anos, fiquei abismada de seu rompante. Mais  abismada, vendo o padre César  sorrir junto e não se zangar com eles... Meu pai,  num gesto de euforia, jogou   o chapéu para o alto , mais alto do que Nossa Senhora no altar       e gritava          :

         _ A guerra acabou! A guerra acabou!

         Batia palmas ruidosas, no que foi acompanhado por todo mundo. Até pelo padre César, para meu espanto... Alguém se lembrou  do sino que àquela hora – um eco da noite no pequeno lugarejo_  jamais iria ousar abrir o peito e cantar... Na pressa, os anjos saíram carregados pelos pais. A santa ficou sem coroa naquela noite.As flores e as palmas ficaram esquecidas pelos bancos.O sino  cantou e dançou o quanto quis. Meu irmão, com a invejada sotaina vermelha e sua rica bata rendada, teve seu momento de glória: pendurado    na corda do sino, cantava mais alto do que ele:

         _A guerra acabou!  A guerra acabou!

         _ Dlin! Dlon! – repetia o sino   da minha  Estrela do Indaiá. E sua voz    se misturava com  a voz do meu irmão...

         O rádio gritava na sala. Os irmãos pequenos acordavam assustados.        Papai queria mais – eu sabia. O coração dele ansiava por nossa terra natal, Dores do Indaiá.Naquela hora, ele queria estar  lá, abraçar os parentes e amigos. Não teve dúvidas: abriu as janelas                 azuis de nossa casa amarela. Ajeitou nelas seus filhos e minha mãe. Alongou o olhar pelo azul da noite e seu rosto se iluminou:

         _ Gente, lá está Dores! Os foguetes lá  longe! Os foguetes, vejam!

         Lá no horizonte escuro,  o céu jogava  luzes e estelas   sobre a terra, sobre nossa casa.

         Papai vibrava. Queria descobrir mais alegrias... Subiu pelo pé de espirradeira de flores cor-de-rosa e, de lá, anunciava:

         _ Gente, achei Melo Viana! Olhem os foguetes! Foguetes de lágrimas! Deve ser o Boreta!

         Seguimos a direção de seu olhar e lá, bem longe, achamos novas estrelas correndo no céu escuro – gotas de lua    soltas no ar. Era o amigo Boreta comemorando a paz: cada chuva de estrelas indicava      que a notícia já chegara nos povoados vizinhos.

         Não sei até que horas ficamos cantando a vitória. Sob a chuva de  estrelas miúdas...

         Agora, o mundo comemora o cinquentenário  do final da      Segunda Guerra. Meu irmão embala  outros sinos  que ninguém sabe  para quem eles cantam. Ou choram...

         Mas, cá dentro, eu sei. Ninguém comemorou o fim da guerra  de   modo mais bonito do que um certo anjo azul. As luzes daquela noite,  estrelas cadentes dos fogos ao longe, um rosto de mãe emoldurado pela janela azul de minha casa amarela. Dois anjos   , um branco e outro azul, com diademas de luas, olhando o fim da guerra pela janela escancarada na noite fria de maio. A paz cantando para meu irmão de olhos claros - que dançava ao vento, com suas ricas roupas de coroinha - embalado pelo velho sino...

         E meu pai, enlouquecido de alegria, espiando o céu de sua terra natal,  lá do alto do pé de espirradeiras cor-de-rosa...

         Acho que a guerra destruiu parte desse mundo meu. Com que armas, com que canhões, meu coração sabe bem...

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         Dores do Indaiá, maio de 1995   

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