Todo 8 de maio, minha memória afetiva traz-me aquela noite linda, lá de Estrela do Indaiá.
E... hoje é outro 8 de maio....
O MAIO DA PAZ
Maria
Estávamos
subindo para o altar. Era maio. Éramos
dois anjos, um azul, outro branco. Era tempo de pai, de mãe de flores, de asas
brancas e diademas de estrelas... Nosso céu era nossa casa. Ou, quem sabe, a
nossa casa era o céu...
Minha
irmã era o anjo branco. O azul era uma menina que “hoje é minha vó”. Avó de
minhas lembranças. A menina é a mesma.
Fiquei sendo avó de mim.Sou avó daquele anjo azul que eu era naquele oito de
maio de 1945.
A
igrejinha branca cantava: mês de maio/mês de flores/mês de amores a Maria...
Nossa Senhora esperava no altar. A
coroa andava nas mãos de minha irmã, as flores e as palmas andavam nas outras
mãos, balançando as cabecinhas perfumadas para o povo singelo que rezava na
igrejinha. O Padre César parecia um rei sem trono, com suas vestes bordadas de
dourado. Os coroinhas com as mãos escondidas
dentro das mangas largas
das batas de renda. E meu irmão
era um deles, matando-me de inveja com
sua sotaina de flanela vermelha e a sobrepeliz aberta em crivo. Ah! Eu daria
tudo para ser coroinha! Mas menina só podia ser anjo...
De repente, um grupo tomou conta da igrejinha,
tomou conta do “Mês de maio/mês de flores”, tomou conta das rezas das mulheres. O homem, chapéu na mão,
gritava pela igreja
_
A guerra acabou! A guerra acabou!
Assombro,
silêncio. Cochichos, murmúrios, pessoas saindo de seus lugares. Alguns homens
saíram apressados da igreja. O padre pediu silêncio. Que aguardassem. Era
preciso ter certeza. Meu pai, de terno de panamá, “cor-de-rosa”, irrompeu entre
os bancos, seguido de outros
homens .
Então,
papai fez uma coisa incomum. Eu, nos meus sete anos, fiquei abismada de seu
rompante. Mais abismada, vendo o padre
César sorrir junto e não se zangar com
eles... Meu pai, num gesto de euforia,
jogou o chapéu para o alto , mais alto
do que Nossa Senhora no altar e
gritava :
_
A guerra acabou! A guerra acabou!
Batia
palmas ruidosas, no que foi acompanhado por todo mundo. Até pelo padre César,
para meu espanto... Alguém se lembrou do
sino que àquela hora – um eco da noite no pequeno lugarejo_ jamais iria ousar abrir o peito e cantar...
Na pressa, os anjos saíram carregados pelos pais. A santa ficou sem coroa
naquela noite.As flores e as palmas ficaram esquecidas pelos bancos.O sino cantou e dançou o quanto quis. Meu irmão, com
a invejada sotaina vermelha e sua rica bata rendada, teve seu momento de
glória: pendurado na corda do sino,
cantava mais alto do que ele:
_A
guerra acabou! A guerra acabou!
_
Dlin! Dlon! – repetia o sino da minha Estrela do Indaiá. E sua voz se
misturava com a voz do meu irmão...
O
rádio gritava na sala. Os irmãos pequenos acordavam assustados. Papai queria mais – eu sabia. O coração
dele ansiava por nossa terra natal, Dores do Indaiá.Naquela hora, ele queria
estar lá, abraçar os parentes e amigos.
Não teve dúvidas: abriu as janelas azuis de nossa casa amarela.
Ajeitou nelas seus filhos e minha mãe. Alongou o olhar pelo azul da noite e seu
rosto se iluminou:
_
Gente, lá está Dores! Os foguetes lá
longe! Os foguetes, vejam!
Lá
no horizonte escuro, o céu jogava luzes e estelas sobre a terra, sobre nossa casa.
Papai
vibrava. Queria descobrir mais alegrias... Subiu pelo pé de espirradeira de
flores cor-de-rosa e, de lá, anunciava:
_
Gente, achei Melo Viana! Olhem os foguetes! Foguetes de lágrimas! Deve ser o
Boreta!
Seguimos
a direção de seu olhar e lá, bem longe, achamos novas estrelas correndo no céu
escuro – gotas de lua soltas no ar.
Era o amigo Boreta comemorando a paz: cada chuva de estrelas indicava que a notícia já chegara nos povoados
vizinhos.
Não
sei até que horas ficamos cantando a vitória. Sob a chuva de estrelas miúdas...
Agora,
o mundo comemora o cinquentenário do
final da Segunda Guerra. Meu irmão embala outros sinos
que ninguém sabe para quem eles
cantam. Ou choram...
Mas,
cá dentro, eu sei. Ninguém comemorou o fim da guerra de
modo mais bonito do que um certo anjo azul. As luzes daquela noite, estrelas cadentes dos fogos ao longe, um
rosto de mãe emoldurado pela janela azul de minha casa amarela. Dois anjos , um branco e outro azul, com diademas de
luas, olhando o fim da guerra pela janela escancarada na noite fria de maio. A
paz cantando para meu irmão de olhos claros - que dançava ao vento, com suas
ricas roupas de coroinha - embalado pelo velho sino...
E
meu pai, enlouquecido de alegria, espiando o céu de sua terra natal, lá do alto do pé de espirradeiras
cor-de-rosa...
Acho
que a guerra destruiu parte desse mundo meu. Com que armas, com que canhões,
meu coração sabe bem...
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Dores
do Indaiá, maio de 1995
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