quinta-feira, 22 de maio de 2014


 

A GARRAFINHA VERDE
Maria

 

Acabo de lavar a garrafa grande de café. Agora, ela só vai sair do armário quando a turma toda voltar.

Bem que achei estranho comprar uma garrafinha para o café, depois de tantos anos de casa cheia. Bem que achei esquisito fazer almoço nas panelas de guisadinho, brincar de casinha  -já setentona... Mas, fazer o quê?

O BEM falava, quando me via esperando a vinda dos primeiro filhos casados e dos primeiros netos:

- Hoje a Sá Maria do Cruz está atacada! A Edite do Totonho não toma jeito!

Todo mundo ria. Ele se referia a duas parentas dele, famosas, pelo exagero e pela paciência com as manhas dos netos...

É mesmo, gosto de fazer a vontade de cada um, acho que não me custa muito... A vida está passando tão depressa...

A cada vez que a turma se reúne, noto que os netos estão maiores, que têm outros interesses e noto mais fios brancos nos cabelos de meus filhos. Não falando da mãe que, não fosse a pintura dos cabelos...

Então, começo durante a semana: paçoca, para quase todos... Lombo amarrado, coxinha de frango para uma neta niquenta...

Na hora do almoço, a coisa ferve!

- Quero é batata frita... de bolinha...

- Quero é de palitinho!

Vou ajeitando tudo, a Vani dá umas reclamadinhas – certa de que a avó não abre mão das manhas dos netos – e, devagar, lá está a mesa da Sá Maria do Cruz e da Edite do Totonho...

Os olhos dos filhos se ameigam, quando veem a rapa dourada do arroz...

Outro se enternece com a travessa de moelas:

- Hoje é bom, tem moela pra todo mundo!

E os casos da infância enchem a copa de saudades dos rostos queridos que já estiveram conosco, em outros almoços de domingo...

Ainda há a pizza, capricho de uma neta, a mesma das coxinhas de frango, a mesma que vive de brisa... Mandioca frita, com rodelas de cebola, disputadas pelos filhos, homens-meninos...

Tutu Bebo, prato preferido de um genro,  O Dirceu da Carla... Salada de legumes para algum valente que vive de dieta...

Ah, a sobremesa! Meu arroz-doce é famoso e é apreciado por quase todos. Os pequenos preferem o bombom de bolacha, palha italiana... O pé de moleque, de rapadura, some num segundo e – enquanto o farelo é disputado por todos, aos punhadinhos, jogados na boca -- verdadeira infância – eu falo pra Rosana, uma das noras: - Este eu fiz pra você e pra minha caçulinha. Elas riem como duas meninas mimadas...

Outra filha passa tomando o resto de Coca-Cola no bico da garrafa, nem parecendo que é mãe de dois moços... Eu falo pra ela:

- Nossa, esse restinho era da Fernanda...

E minha filha ri, fazendo covinha no rosto:

- Uai, tava na geladeira... Esse, já era!

Faço chicotinho pra ela, que sai requebrando, pirraçando a sobrinha da Coca...

Antes que a noite chegue de todo, dou uma ajeitada na cozinha. As panelas grandes voltam para os armários. Acabo de lavar a garrafa grande de café...

A noite está tomando conta da cidade, do quintal, da casa e do meu coração. Ainda me assusto com a solidão: os filhos que moram em outras cidades se foram todos. Os que moram aqui acabam de sair, com mil recomendações:

- Mamãe, já fechei o barracão...

- Vó, já guardei as bicicletinhas dos meninos... (É o Rafael, meu neto, já responsável e com o pensamento em outros mundos...)

- Mãe, qualquer coisa, liga!

- Mamãe, o celular está carregado?

- Já fechei a garagem...

O filho que mora aqui pertinho fecha a porta e grita:

- Mãe, joguei a chave no sofá da sala!

Por um momento, fico meio perdida, meio avoada, tentando entender a solidão. Dou uma conferida nos fundos da casa. Faço tudo como o BEM sempre fazia... As panelonas já estão no armário; as panelinhas de fazer guisadinho voltam para a ativa. O gato – batizado de Lucas pelo meu neto Artur – sabe que, de novo, é o rei da casa e do chamego da vó... Com passos fofos, me segue pela cozinha afora...

Agora, vou esperar o telefone tocar, avisando que chegaram bem:

- Mãe, chegamos! (Noto uma ponta de saudade na voz querida dos filhos e eu fico tristinha de cá...)

O telefone toca:

- Mamãe, a Jéssica já chegou?

É uma filha preocupada, querendo saber de minha companhia da noite...

Aproveito e vou, de novo, à cozinha.

A garrafinha verde está solitária na mesa e a dona de casa está solitária na casa.

Fico pensando nos versos de Emílio Moura, nosso poeta: “Que fica de mim no tempo? Um verso? Que gesto será lembrado?”

Antes que eu pense no que ficará de mim no tempo, o telefone toca:

- Mãe, chegamos!

Pego o meu tricô e, em silêncio, vou relembrar a ternura do fim de semana.

O telefone toca de novo:

- Mamãe, chegamos!

O Lucas já se aninhou no meu colo e eu começo a tecer o futuro, a esperança, a vida...

Meu coração sabe que, de novo, é tempo de garrafinha verde...

 

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