Quintal Novo
Maria
Não é o quintal que é novo. Ele é
velho como a serra.
Novos são as galinhas, os pintinhos e
os galos. Um, do pescoço pelado, metido que só, e outro, um galo índio, de
pernas compridas e elegantes.
O galo de pescoço pelado já era do
pedaço. Remanescente de outros quintais.
Sem o BEM, o quintal perdeu a graça e
a poesia. A cerca de bambu, prosaica e antiga, foi caindo aos poucos. A cerca
de nosso coração também era frágil, de bambu carunchado, tirado fora da lua...
A alegria do nosso quintal ficou na
lua minguante. E nosso coração também.
Até que tentamos. Ganhei filhotes de
gato e nem eles se ajeitaram no quintal. Tudo arrumadinho: ração de gato,
vasilhinha de gato, areia de gato, caminha de gato. Nada deu certo! Os netos
arranjavam nomes lindos, adoçavam a voz, nada valeu. Lá se foram a Estrelinha,
a Rajadinha, a Naza.
Até uma cachorra linda, toda anelada,
toda dengosa – a Menininha – veio morar comigo. Nem as sombras do quintal, nem
as flores, nem a caminha macia, nem as gracinhas de meus netos, nada a
conquistou! Fez greve de fome e voltou para Abaeté.
De verdade, ninguém se ajeitava no
quintal – eles pressentiam que nosso coração estava meio seco, sem alegria. As
galinhas debandaram para a Fonte do Povo. Só sobrou o galo do pescoço pelado.
Tristonho, solitário, passou a dormir no pé de quaresmeira-roxa, bem debaixo da
janela do meu quarto. Tadinho, ele descobriu que estava sozinho no quintal
triste e que meu coração era um quintal velho e abandonado.
Meu filho, o Eduardo, tentou (re)criar mais galinhas, parecendo que o quintal
cantaria de novo. Não cantou. Sem a presença serena do pai, faltava alegria,
faltava tudo.
Até que o tempo, que tudo cose,
costurou a tristeza, costurou nosso coração, costurou a cerca de bambu. Pôs
escoras novas em nossa vida, esticou arames novos na cerca de nossa alma.
Agora, o quintal está novo. Agora, ele
canta de novo e o sol faz manchas douradas no chão. Há milho e canjiquinha, há barulhinhos e
briguinhas, bicadinhas e ciuminhos. Já há namoros que prometem belas ninhadas.
Ninhos novos, cheiro de capim. Ah! até parece que o BEM toma conta de tudo!
Daqui, da escada alta, ouço as
angolinhas, os pintinhos e as galinhas se ajeitando para dormir. Meu coração
sorri e agradece a paz que está voltando. Bendito quintal!
Na Semana Santa, novos habitantes vão
chegar: marrecos e patos, gansos e peruzinhos, codornas e pintinhos de raça.
O galo de pescoço pelado até resolveu ficar
por lá, crente que é o rei do terreiro. O velho balanço resolveu cantar de
novo: carrega netos, carrega esperanças.
Há um brilho novo nos olhos de meus
filhos. Estão ficando criança de novo. Será? No quintal, há o milagre da
infância.
É a Páz(coa). Tudo renasce!
Até o meu quintal. Até a cerca velha
do meu coração!
Quem?
- Quem plantou um circo em meu
coração?
- Quem plantou um parque de diversão
dentro do meu peito?
-Quem furou a terra de minha alma, sem
autorização, sem documentos?
- Quem fincou estacas na alma daquela
menina da Estrela?
***
Agora, não me conheço direito... Porque,
de verdade, há uma lona encardida no céu de minha estória.
Porque, de verdade, vejo o céu estrelado
pelos buracos e remendos de uma lona pobre que resolveu fazer morada no meu
coração.
Se fico menina, estou dentro do Parque Teatro Gaúcho, brincando com
bonecos de pano, de cara pintada, cabelos de lãs coloridas.
Se fico menina, com cara de fada, ponho
a Maria Caxuxa no colo e ela conta mil estórias para mim...
Se fico menina, estou de mãos dadas
com o meu pai e minha mãe, estou de mãos dadas
com a Ana e meus irmãos – estou de mãos dados com a felicidade.
Se fico mocinha, com cara de nuvens,
ouço o alto-falante anunciando: “Esta música, alguém oferece pra alguém, e só
esse alguém sabe quem!”
Se fico moça, estou moçamente assentada em cadeiras de gente
grande, vendo o palhaço Meloso virar cambalhotas dentro de roupas largas, cheia
de bolas e flores.
E, ao lado do BEM, encanto-me com
zebras de roupa listrada – quem costurou aquela roupa, com listras tão
perfeitas? Ah! Deve ter sido um alfaiate do céu...
Se sou moça casada, seguro nas mãos do
BEM, e vejo o Globo da Morte de olhos fechados...
Se sou moça casada, aperto as mãos do
Bem quando vejo que ele está fascinadão
pelas bailarinas de roupas brilhantes – e ele ri feliz, sabendo que eu estou
enciumada...
Se sou uma jovem mamãe, passeio com os
meus seis filhos – parecendo três casais de gêmeos – entre as mil barracas. E
os cavalinhos do carrossel são poucos para a turma toda. E, mais uma vez, estou
junto ao BEM, numa felicidade singela e encantada.
Circo Teatro Bibi, Circo Teatro Irmãos
Garcia, Parque Montanhês, Circo Teatro União...
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- Quem fincou tantas estacas na terra
de meu coração?
- Com que ferramentas cavaram o chão
de minha alma?
- Quem deu autorização para algum
mágico morar dentro de minha vida?
- Quem fabricou um céu encantado, onde
vejo estrelas miúdas pelos mil buraquinhos da lona pobre?
E eu sei que nenhum vendaval, nenhum
vendaval, nenhum furacão será forte o bastante para arrancar essas estacas do
chão de minha estória...
Rádio Ativa
Estou de férias. Como sempre, é a
mesma coisa: quando tenho tempo, não tenho tempo para nada...
Ajuntei uma sorte de roupas (ainda se
fala assim?) para consertar: os netos crescem e as barras das roupas diminuem.
Separei linhas e estou tecendo uma
blusa colorida, de quadrinhos antigos, aprendidos com minha avó Cristina.
Comecei um bolero de tricô – mais
fácil para fazer vendo televisão – sou noveleira mestra!
A tinta do cabelo me espia e eu nem
ligo pra ela. Tenho a maior preguiça de pintar o cabelo – para mim, um dia
perdido. E quando invento – estou mineiramente inspirada – chega visita e eu
não posso sair lá fora. Parece sonho – é, hoje não tem jeito – estou indo ao
fundo do baú...
Eu, parecendo uma bruxa, e a visita toda fresca, de sapato de salto,
esperando a dona da casa; às vezes...
esperando a escritora. Fica aquele constrangimento, aquela desconfiança no
ar, ninguém acreditando na “sessão de beleza”... Sabe como é: cá pros nossos
lados, não há o costume de se avisar
sobre a visita, e porta trancada não combina muito com a gente.
Ir ao Salão? Piorou! Tenho mais
preguiça ainda: corto volta de salão... Por isso mesmo, ando nesta beleza toda!
Mas eis que tive tempo de ouvir a
Rádio Ativa de Dores do Indaiá. Entre músicas e comerciais, o Carlinhos da Rádio – ou seria o Fernando Zica? –
lançou ao ar um simpático apelo: Dona Fulana está inconsolável e pede a ajuda
dos prezados ouvintes. Desapareceu de sua
casa um cravo de estimação que atende pelo nome de Louro. Trata-se de relíquia
da família. O Louro era de um sobrinho... Ele faleceu e ela o adotou.
Tive pena da dona do Louro, pena
mesmo.
Eu tinha uma “Crava”, lindinha, a
Tataca. Já contei aqui que ela roeu o fio de telefone, uma ligação antiga, lá
no barracão, e que ficamos sem poder conversar por dias e dias, lembram-se?
Pois olhem o que aconteceu com a
Tataca... Troquei a gaiola dela de lugar, na maior inocência. A danadinha
descobriu outro fio.
No outro dia, de manhã, a Vani gritou:
- Dona Branca, nossa! A Tataca morreu!
Não acreditei! A Tataca estava esturricadinha,
mortinha, agarradinha aos arames da gaiola. Ela descobriu outro fio... da linha
elétrica – que eu nem havia atinado... Chorar foi pouco...
O Dirceu, meu genro, quis acabar logo
com aquela lenga-lenga: fez uma covinha rasa e enterrou a cravinha Tataca.
Daí, veio uma ventaria varrendo o
quintal. Cá de cima da escada, fiquei olhando, olhando sem ver...
Então, uma folhinha me chamou a
atenção: nem o vento conseguia
arrastá-la. Ah! Deve ser uma mudinha que o Eduardo plantou... Vou
protegê-la do vento... (o meu filho gosta de semear plantas antigas e
diferentes, e eu o ajudo).
Fui ver. Não era folha. Era o rabinho
da Tataca que ficou de fora...
Chorei de novo, chorei... E não havia
Rádio Ativa que me acudisse...
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