Bagageira
“Vivi junto com você
e não vi nada de diferente! Que cabeça boa!”
(Amiga de infância)
Eu também não sabia que meu coração
ia carregar a beleza e a poesia que ele ia descobrindo pelos cominhos que
percorri.
Eu também não sabia que ia guardar em
minha alma tantos matrizes diferentes e tantos cantos; tantos retalhos de
sonhos, tantos pedaços de vidas.
E, hoje, não sou uma só.
Sou a risada de tantos que passaram
por mim. Sou a alegria de pessoas amadas e o olhar de crianças queridas.
Fiquei sendo madrugadas estreladas
de Estrela e o pranto das águas do Indaiá.
Coração pesado de falas que saíram
de bocas e lábios antigos; de cantigas-de-roda que brinquei em ruas sem nome:
nego-fugido que fugiu pra tão longe que nunca mais achei.
Vesti vestidos rodados, alados, que
me levaram alugares de cetim e de nuvens. E eles estão guardados na arca de
meus ontens.
Andei tanto que meu olhar não é só
meu: é o olhar de espanto do Chico-Torto e da Júlia-Pé-Moleque que arrastavam
uma loucura mansa pela mansidão de minha infância, é o olhar-esperança que vi
brilhar entre/os silêncios das aulas; ora, torna-se tão doce como o farol que
clareia nossa sala nas noites de Natal. E esse farol vem dos olhos de meus
netos...
Minhas mãos não são apenas minhas;
são mil mãos de afagos guardados.
Meu pensamento é menino, é velho, é
caduco. Às vezes poeta versos: às vezes pensa na aspereza da vida e fica
amarrotado como papel velho.
Às vezes, reconheço, em minha voz,
uma voz tão antiga que não sei quem era seu dono...
Meu coração foi guardando arco-íris
e estrelas, luas e sons, risos e gestos.
Ele foi vivendo e, com mil desvelos,
pegou flores e jardins céu e poeira vermelha, morcegos e assombrações, abraços
e valsas.
Quando dei por mim, eu não era mais
eu.
Me transformei na vizinha do lado,
em quem me ensinou coisas bonitas, em fadas, em Anas e Walquírias, em BEM e
preces: sou sombra de minha mãe e pedaços de meu pai: a reza do padre, as
ladainhas de maio, o A.B.C. da escola e o garfo do purgatório: o feitiço da
mulher torta e as histórias de bruxas: sou o tear da Maria Cardosa e as anáguas
engomadas: sou 6 horas da tarde e a comunhão de todo dia: sou uma casa grande,
que ficou na minha parede e retratos antigos que me olham de outros lugares, de
outros mundos.
Sou a paz das tardes de Estrela e a
cadência do Clube Velho de Dores.
Sou as rendas que minha tia
costurava e a música da máquina de minha mãe.
Se algum dia, alguém quiser
encontrar meu coração, aí vai o roteiro do caminho onde ele está:pegue a
estrada, que vai de Dores a Estrela...
Ele está pendurado em alguma árvore, pode estar dormitando entre uma nuvenzinha
cor-de-rosa... Meu coração pode estar rezando em uma igrejinha, ou
pode estar brincando com crianças na porta de uma casa amarela , de portas e janelas azuis...
É
tão fácil achar meu coração! Ele deve estar em alguma curva de
ESTRELADORES ou, quem sabe, na porteira
de uma rocinha singela de DORESTRELA...
É, minha amiga. Vivi junto com você...
Eu também não sabia que seria
bagageira de tanta beleza, de tanta poesia!
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