terça-feira, 2 de junho de 2015


Bagageira

 

 

“Vivi junto com você e não vi nada de diferente! Que cabeça boa!”

(Amiga de infância)

 

            Eu também não sabia que meu coração ia carregar a beleza e a poesia que ele ia descobrindo pelos cominhos que percorri.

            Eu também não sabia que ia guardar em minha alma tantos matrizes diferentes e tantos cantos; tantos retalhos de sonhos, tantos pedaços de vidas.

            E, hoje, não sou uma só.

            Sou a risada de tantos que passaram por mim. Sou a alegria de pessoas amadas e o olhar de crianças queridas.

            Fiquei sendo madrugadas estreladas de Estrela e o pranto das águas do Indaiá.

            Coração pesado de falas que saíram de bocas e lábios antigos; de cantigas-de-roda que brinquei em ruas sem nome: nego-fugido que fugiu pra tão longe que nunca mais achei.

            Vesti vestidos rodados, alados, que me levaram alugares de cetim e de nuvens. E eles estão guardados na arca de meus ontens.

            Andei tanto que meu olhar não é só meu: é o olhar de espanto do Chico-Torto e da Júlia-Pé-Moleque que arrastavam uma loucura mansa pela mansidão de minha infância, é o olhar-esperança que vi brilhar entre/os silêncios das aulas; ora, torna-se tão doce como o farol que clareia nossa sala nas noites de Natal. E esse farol vem dos olhos de meus netos...

            Minhas mãos não são apenas minhas; são mil mãos de afagos guardados.

            Meu pensamento é menino, é velho, é caduco. Às vezes poeta versos: às vezes pensa na aspereza da vida e fica amarrotado como papel velho.

            Às vezes, reconheço, em minha voz, uma voz tão antiga que não sei quem era seu dono...

            Meu coração foi guardando arco-íris e estrelas, luas e sons, risos e gestos.

            Ele foi vivendo e, com mil desvelos, pegou flores e jardins céu e poeira vermelha, morcegos e assombrações, abraços e valsas.

            Quando dei por mim, eu não era mais eu.

            Me transformei na vizinha do lado, em quem me ensinou coisas bonitas, em fadas, em Anas e Walquírias, em BEM e preces: sou sombra de minha mãe e pedaços de meu pai: a reza do padre, as ladainhas de maio, o A.B.C. da escola e o garfo do purgatório: o feitiço da mulher torta e as histórias de bruxas: sou o tear da Maria Cardosa e as anáguas engomadas: sou 6 horas da tarde e a comunhão de todo dia: sou uma casa grande, que ficou na minha parede e retratos antigos que me olham de outros lugares, de outros mundos.

            Sou a paz das tardes de Estrela e a cadência do Clube Velho de Dores.

            Sou as rendas que minha tia costurava e a música da máquina de minha mãe.

            Se algum dia, alguém quiser encontrar meu coração,  aí vai   o roteiro do caminho onde ele está:pegue a estrada, que vai de Dores   a Estrela... Ele está pendurado em alguma árvore, pode estar dormitando entre uma nuvenzinha cor-de-rosa... Meu coração pode estar rezando em uma igrejinha,  ou  pode estar brincando com crianças na porta de uma casa  amarela , de portas e janelas azuis...

            É  tão  fácil achar meu coração!  Ele deve estar em alguma curva de ESTRELADORES ou, quem sabe, na   porteira de uma rocinha singela de DORESTRELA...

 

            É, minha amiga. Vivi junto com você...

            Eu também não sabia que seria bagageira de tanta beleza, de tanta poesia!

 

           

 

 

           

 

 

 

 

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