terça-feira, 2 de junho de 2015


CORRIDA DE TÁXI

Maria.

(Para os filhos do Sô Alcides Oliveira Sobrinho e D. Maria Dalva Soares de Oliveira, nossa querida DALVA MACHADO.

        Eu passava pra lá e pra  cá pela frente da rodoviária velha. Ali era o meu caminho para a Escola Normal, onde trabalhava de manhã à noite. De tanto passar, acabei ficando conhecendo todos os taxistas. No interior é assim – só de passar perto, fica sendo conhecido, fica sendo amigo. “Amigo de }Bom-dia”...

        Era assim que eu conhecia um chofer de praça: bom-dia, um sorriso, como vai, oi, boa-tarde, tudo bem? Isso, por aqui, significa ser conhecido, significa “poder confiar”...

        Era um moço alto, forte, com jeito de comerciante, de dono de cartório, de bancário. Tudo nele era limpo, o carro brilhava, o cabelo preto, sem um fio fora do lugar. Roupas sempre muito limpas, sapatos tão engraxados quanto os pneus de seu táxi.. Era ver o dono, era ver o carro. Por isso, quando voltei de Belo Horizonte, naquele dia, estava tranquila. Gastara os últimos trocados na compra de um livro – Olga Benário que eu andava louca pra ler.

        Quando entrei no ônibus, vi a cara do motorista, do trocador, a cara do povo... Graças a Deus, estou em casa!

        _ Pra que dinheiro? Chego lá em Dores, pego um táxi e pago lá em casa!

        Olhei, olhei, procurando o Sô Alcides, nosso velho amigo, nomeado CHOFER DA CASA pelo  BEM. Com ele, a turma toda rodava tranquila. Aí avistei o chofer do bom-dia, como vai. Falei com um menino: _ Qual é o nome daquele chofer lá?

        _Ah, é o Zé Arve...

        Eu já esperava a gentileza e a timidez.

        _O senhor pode me levar em casa?

        _Hã..hã...hã...

        _O senhor sabe onde eu moro?

        _Hã.. hã..há...

        _Eu posso pagar lá em casa? Estou sem dinheiro...

        Quis espichar a prosa, explicar mais. O Zé Arve não rompia com o papo.

        _ Posso pagar lá em casa?

        _Hã, hã!

        Tudo certo, descemos a Avenida Francisco Campos. Pela primeira vez o Zé Arve falou uma frase:

        _A senhora ainda mora no mesmo lugar?

        -Hã, hã! Imitei o Zé Arve, já que ele era caladão e tímido. Daqueles que  envermelham só de falar hã, hã.. Aí, em vez de ele virar na São Paulo, que seria o normal, ele seguiu reto. Pensei:

        _Ele vai descer na Rio de Janeiro, já  fica com o carro virado para a rodoviária...

        Qual nada! O Zé Arve subiu pela Zacarias e continuou em frente. Gungunei qualquer coisa e ele, firme, caladíssimo, limpíssimo, eficientíssimo, seguindo em frente. Aí, foi parando, parando, parando... até parar. Eu tentava entender, tentava perguntar:

        _Uai, por que paramos aqui?

        O Zé Arve, vermelhinho, abriu a porta para mim, foi descendo as mil malas e sacolas.

        _Pode descer...

         _Uai, mas eu não moro aqui!...

        _Uai, a senhora falou que morava no mesmo lugar...

        _ Moro mesmo, só que é no outro quarteirão, ali atrás...

        Pensei que o Zé Arve ia estourar de vermelhão. Tentei explicar      _ A minha casa é aquela lá, Sô Zé... Não faz mal, está pertinho...

        Ele, encabuladíssimo, voltou as malas pro carro.. Olhou mil vezes para o meu rosto, conferia no espelhinho. Eu sem entender nada.

        Só quando chegamos à minha casa de verdade, ele falou:

        _ Uai... eu pensei que a senhora era das “ALEMOAS’...

        Não ouvi mais nada. Estourei de rir, e ria, e ria, e ria...

        Tapava o rosto com as mãos, via a cara espantada do Zé Arve, como disse o menino, e recomeçava a risada.  Ele foi embora, vermelhinho, no carro limpíssimo, com certeza, pensando que eu não batia bem...

        Na hora, não dei conta de explicar nada ao tímido motorista, porque muita gente pensa que eu sou parente do Walter Alemão,  pensa que a D’Arc Ude é minha mãe, ou  minha tia... Só no outro dia, quando fui acertar com ele, pudemos conversar.

        Me  desculpe, Sô Zé.  Tenho essa mania de rir à toa, nem te paguei ontem...

        _Me desculpe a senhora. Mas... eu jurava que a senhora era das alemoas...

        Tantos anos isso! Depois do caso, ficamos fregueses. E amigos!

        Agora, a morte do Zé Arve. Rezei pra ele não morrer, não era hora. Tão novo, tão cheio de vida! Tão educado, tão eficiente, tão discreto!

        _Meu Deus, devagar a maldade vai chegando cá no interior, cá no sertão. Um lugar  onde a gente conhece todo mundo, só de falar bom-dia, boa-tarde. Um lugar onde a gente entra no táxi, sem falar nome de rua, número de casa, sem dinheiro e sem documento.

        De verdade, Dores está arrasada como a fúria dos assaltantes. Somos um povo simples, amigo. Só queremos trabalhar, cuidar de nossa vidinha, ler o nosso livro, entrar num táxi brilhante  e deixar o motorista rodar. Pelas ruas que nós amamos.

        _Ah, Zé Arve, me desculpe tanto riso e, agora, me desculpe tanta tristeza. (Penso que ele está falando:)

     _ Não é nada... me desculpa a senhora... Mas que a senhora tem a cara das alemoas, ah, isso tem!

        E agora, em que táxi vou andar, sem dinheiro e sem endereço?  Sem o Sô Alcides, que já se foi e deve estar  carregando anjos nas nuvens, sem o Zé Arve... E agora, em que táxi vou andar?

        _ Vocês sabem me contar...

               

               

                 Dores do Indaiá, 4 de  janeiro de 2003.

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