domingo, 26 de abril de 2015


SARAU NA CALÇADA

Maria

 

Aula Particular. Literatura. Intertextualidade. Final de curso. ENEM chegando. Cerca daqui, cerca dali. Alunos e professora baratinados.

_ Olá! Vamos entrando, moçada!

Livros espalhados. Olhares meio assustados. Cansaço nos gestos.

Então, um deles falou:

-Por que você não veio ontem, Émerson?

_ Eu tive ensaio da Banda e não podia faltar... Vai ter show sábado...

Pronto. Todos acordaram. A professora quis saber:

_ Gente, tem Banda aqui em Dores e eu nem sabia!

-Émerson, o que você toca na Banda?

_ Guitarra, violão...

A conversa se alastrou! Adeus, ENEM! Adeus, intertextualidade!

Três alunas, lindas, moderninhas também tocavam! Em Grupo de Jovens, no coro da igreja, em festinhas...

Enquanto eles matracavam sobre tudo, menos Literatura, a professora quebrava a cabeça para pôr a turma nos eixos... Aí...

_Gente, quem conhece a música Monte Castelo, da Legião Urbana? Todos conheciam e a cantoria começou a rolar na sala encalorada... Renato Russo até “chegou” para ouvir sua letra cantada tantos anos depois...

_ E Epitáfio, dos Titãs, quem conhece?

Não precisou de mais nada: todos se puseram a cantar: O acaso vai me proteger...

Eu pensava: Pronto, e agora, como vou fazer essa moçada parar?

_ Tudo bem, tudo lindo, mas... agora, é aula de verdade!

Entre muxoxos, comecei a falar sobre de onde veio a letra de Renato Russo.

Abrimos apostilas, as cabeças se juntavam em volta dos livros, até que conseguiram encontrar a matéria de que precisavam. Ficaram abismados de saberem que Renato Russo foi até aos Coríntios e a Camões pra escrever seus versos!

_ Os palpites choveram:

_ Nossa, pensei que ele tirou tudo da cabeça dele!

_ Eu nunca pensei que ele soubesse nada de Bíblia e de Camões...

_ Desisto de ser poeta...

Fomos terminar a aula perto do computador, onde ouviram a música, cantaram junto, sorriam uns para os outros, com cara de “Ah, agora nós estamos cantando sabendo a história da letra”!

Durante três dias, as aulas renderam e a intertextualidade passou a ser a matéria preferida. Ninguém queria treinar ortografia, gramática, ninguém queria mais fazer redação...

E eu pensava:

_Bendita música!

Vimos, ainda,o poema que serviu de base para os Titãs, em Epitáfio. Jorge Luís Borges foi admirado e elogiado por eles que, antes, nem queriam saber de poesia...(Quando muito, adoraram NEOLOGISMO, de Manuel Bandeira, por causa do verbo criado pelo poeta e que é o mais importante para eles, os jovens – que vivem enamorados - TEADORAR...)

          O computador mais uma vez cantou com eles e os Titãs:” Devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer...”

Fagner foi muito festejado com CANTEIROS e acharam o compositor muito sensível em prestar homenagens a tantos poetas numa só letra...

Dessa vez, não precisamos ligar o computador: o coração da professora sabe a música de cor e, fui acompanhada pela turma, que seguiram a letra na apostila...

_Assim, disse uma garota, acho que eu dou conta de escrever uma letra de música...

Aproveitei a dica e eles se puseram a escrever paráfrase, paródias... Fingi que não vi, mas houve troca de letras apaixonadas entre dois candidatos a conquistarem o coração de uma das colegas – e ela fez a cara melhor do mundo!

O ENEM chegando, terminamos o curso, com mil promessas de serem atenciosos às questões.

Sairam adeusando saudades, adeusando esperanças, adeusando futuros.

_Vamos voltar para cantar mais, pra estudar mais Literatura!

Eu pensei – “Ah, se o futuro  fosse feito só de poesia, eles iam brilhar...”

Semana seguinte. Tarde morna e azul. Música na calçada. Vozes conhecidas chamando meu nome...

Não acreditei! Meus alunos cantando, ao som de instrumentos, a música folclórica CUITELINHO, que os encantou nas aulas...”Cheguei na bera do porto/onde as ondas se espaia...

De presente, meus três pés de murta, carregadinhos de mil florinhas brancas, derramaram uma chuva de estrelinhas sobre os componentes da poética banda.

Ficamos coroados na calçada, enquanto a vizinhança chegava à porta para ouvir a cantoria...

Deixaram marcas de seus passos no tapete branco que as murtas lhes prepararam...

_ D. Branca, a senhora ficou parecendo uma rainha!

Foi um instante muito lindo na minha tardia carreira de professora particular, já na velha/juventude/velha...

Mas, que em vez em quando, ainda se transforma em rainha...

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Dores do Indaiá, 20 de fevereiro de 2015.

 

 

 

 

 

 

 

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